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OTAVIO FRIAS FILHO
Mitologia cubana
Cuba continua a funcionar como um símbolo que divide opiniões e acende controvérsias. Mudou a natureza desse símbolo desde a revolução armada que levou Fidel Castro e seu grupo ao poder, em 1959. De ponta de lança da revolução a último reduto de resistência ao capitalismo, de promessa a decepção, a mitologia
sobre Cuba continua a emitir sinais, mas agora em sentido contrário.
Como em toda revolução, no início não havia limite para as promessas.
Tratava-se de varrer uma elite corrupta e libertar o país da humilhante dependência que o acorrentava aos Estados Unidos. O feito de Fidel coroava
uma longa sequência de revoluções traídas. Daquela vez, seria diferente:
abria-se caminho para uma democracia autêntica, popular e nacional, voltada a vencer o atraso e a injustiça.
Ninguém pode acusar Fidel de repetir seus antecessores, que terminaram
por ceder aos americanos. A própria adesão à doutrina socialista sobreveio
como forma de manter a autonomia em face do perigoso e gigantesco vizinho, ainda que ao preço de entregá-la à superpotência rival, a União Soviética. Foi a estupidez da política norte-americana que jogou os cubanos nos
braços dos russos.
É difícil, além de ocioso, discutir se havia alternativa. O fato é que a dependência em relação à União Soviética, que subsidiava a ilha a título de
manter uma vitrine socialista no Ocidente, congelou o experimento cubano num ambiente artificial. Permitiu que se induzisse uma evidente distribuição de renda, base do amplo respaldo popular de que Fidel desfrutou
e que ainda parece reter em parte.
O socialismo pressupõe uma enorme renúncia aos impulsos aquisitivos.
A tentação autoritária nasce da necessidade de compelir a essa renúncia e se
realiza por meio de uma doutrina que
se apresenta como "científica". No caso cubano, o autoritarismo se consumou na conveniência de manter uma
disciplina de guerra contra um inimigo que exerce permanente ameaça e
justifica, assim, toda paranóia.
Diante de coalizão de tal forma poderosa -os Estados Unidos, a classe
dominante apeada do poder, a própria fadiga popular depois de tantos
anos de mobilização e sacrifícios-, o
regime encontrou farta justificativa
para se consolidar como ditadura de
partido único e, logo a seguir, como
prosaica ditadura pessoal centrada
num guerrilheiro feito caudilho. As
distorções vieram à tona quando caiu
a União Soviética.
O socialismo pode ser um atalho para acelerar a industrialização em países atrasados (o que não ocorreu em
Cuba). Funciona para distribuir renda
e melhorar o acesso da população pobre à educação e à saúde. Mostrou-se
um fracasso, porém, no que diz respeito a criar riqueza. Não foi outra a
causa de seu fracasso prático e da consequente ressurreição dos valores ligados ao capitalismo liberal.
Da figura heróica que foi, Fidel se reduziu a uma caricatura da qual depende o que resta de socialismo na ilha.
Cedo ou tarde, Cuba voltará à ciranda
desenfreada que alimenta os shopping
centers e mantém multidões na miséria. Poderá fazê-lo, como a Hungria e
a Polônia, a partir de um patamar
mais alto. Terá demonstrado, mais
uma vez, que o impulso aquisitivo é
uma paixão mais forte do que julgava
nossa vã filosofia.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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