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São Paulo, quinta-feira, 05 de junho de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Mitologia cubana

Cuba continua a funcionar como um símbolo que divide opiniões e acende controvérsias. Mudou a natureza desse símbolo desde a revolução armada que levou Fidel Castro e seu grupo ao poder, em 1959. De ponta de lança da revolução a último reduto de resistência ao capitalismo, de promessa a decepção, a mitologia sobre Cuba continua a emitir sinais, mas agora em sentido contrário.
Como em toda revolução, no início não havia limite para as promessas. Tratava-se de varrer uma elite corrupta e libertar o país da humilhante dependência que o acorrentava aos Estados Unidos. O feito de Fidel coroava uma longa sequência de revoluções traídas. Daquela vez, seria diferente: abria-se caminho para uma democracia autêntica, popular e nacional, voltada a vencer o atraso e a injustiça.
Ninguém pode acusar Fidel de repetir seus antecessores, que terminaram por ceder aos americanos. A própria adesão à doutrina socialista sobreveio como forma de manter a autonomia em face do perigoso e gigantesco vizinho, ainda que ao preço de entregá-la à superpotência rival, a União Soviética. Foi a estupidez da política norte-americana que jogou os cubanos nos braços dos russos.
É difícil, além de ocioso, discutir se havia alternativa. O fato é que a dependência em relação à União Soviética, que subsidiava a ilha a título de manter uma vitrine socialista no Ocidente, congelou o experimento cubano num ambiente artificial. Permitiu que se induzisse uma evidente distribuição de renda, base do amplo respaldo popular de que Fidel desfrutou e que ainda parece reter em parte.
O socialismo pressupõe uma enorme renúncia aos impulsos aquisitivos. A tentação autoritária nasce da necessidade de compelir a essa renúncia e se realiza por meio de uma doutrina que se apresenta como "científica". No caso cubano, o autoritarismo se consumou na conveniência de manter uma disciplina de guerra contra um inimigo que exerce permanente ameaça e justifica, assim, toda paranóia.
Diante de coalizão de tal forma poderosa -os Estados Unidos, a classe dominante apeada do poder, a própria fadiga popular depois de tantos anos de mobilização e sacrifícios-, o regime encontrou farta justificativa para se consolidar como ditadura de partido único e, logo a seguir, como prosaica ditadura pessoal centrada num guerrilheiro feito caudilho. As distorções vieram à tona quando caiu a União Soviética.
O socialismo pode ser um atalho para acelerar a industrialização em países atrasados (o que não ocorreu em Cuba). Funciona para distribuir renda e melhorar o acesso da população pobre à educação e à saúde. Mostrou-se um fracasso, porém, no que diz respeito a criar riqueza. Não foi outra a causa de seu fracasso prático e da consequente ressurreição dos valores ligados ao capitalismo liberal.
Da figura heróica que foi, Fidel se reduziu a uma caricatura da qual depende o que resta de socialismo na ilha. Cedo ou tarde, Cuba voltará à ciranda desenfreada que alimenta os shopping centers e mantém multidões na miséria. Poderá fazê-lo, como a Hungria e a Polônia, a partir de um patamar mais alto. Terá demonstrado, mais uma vez, que o impulso aquisitivo é uma paixão mais forte do que julgava nossa vã filosofia.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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