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JOSÉ SARNEY
A cultura do futebol
Um dos setores mais vulneráveis
com a globalização é a cultura.
A cultura canônica, na expressão de
Houaiss, desmorona-se com a invasão
dos enlatados, dos best-sellers, de ritmos, cantores, hábitos, vestuário, alimentação. Tudo se padroniza. Resiste
a cultura popular responsável pela
identidade nacional.
No Brasil, sua marca é a alegria, que
veio da África, dominou o sangue português e incorporou a dança e os folguedos sempre alegres presentes nos
rituais indígenas.
A Sérgio Buarque de Holanda escapou, na tese do brasileiro cordial, o
componente fundamental da alegria.
Essa omissão não é somente dele.
É também de Gilberto Freire e de
Caio Prado Júnior, os três nomes fundamentais na historiografia moderna.
Nenhum deu importância maior a esse aspecto.
A cultura popular é o forte que salva
o Brasil da perda de identidade. É o
carro-chefe que nos distingue. Daí a
referência muitas vezes feita de forma
depreciativa: Brasil, país do futebol;
Brasil, país do Carnaval. Acontece que
podemos dizer que o Carnaval e o futebol são manifestações do nosso jeito
de ser. Não é o Carnaval nem o futebol
em si. É o que está dentro deles. A capacidade de associação e de convivência, a ausência de preconceito, a democracia na pluralidade de opiniões,
que não se chocam, mas se completam. A cultura da praia, do botequim,
do sincretismo religioso. Sempre a
cultura da alegria.
Tomo o futebol. Não é somente o jogo, o campo, a bola. Como é diferente
um jogo no Brasil de um jogo em
qualquer outra parte do mundo. Aqui
a torcida não sofre de frieza nem de esgares de violência. É tudo alegria: os
refrãos, a prática da paixão ao clube e
o culto da opinião sobre a conduta das
equipes, que transforma cada torcedor em um técnico e em um jogador.
Dos campos, o futebol vem para as casas, para a rua, para os transportes, para o trabalho, como parte da vida.
Sempre a alegria. O futebol é uma festa. Não há pobre nem rico, preto,
branco ou amarelo, todos estão juntos
envolvidos pelo delírio num estádio.
Nada mais democrático e igualitário.
Veja o "penta". Havia quem o esperasse. E muitos duvidavam e achavam
mesmo impossível. O futebol brasileiro, maior alegria do nosso povo, foi
massacrado e desmoralizado nesses
dois anos. Os jogadores não prestavam, só queriam saber de dinheiro; os
dirigentes eram bandidos; os times,
falidos e acabados. O governo só estimulava o refrão negativo de moralizar
o futebol. Essa gente, assim tratada,
sai, vence todas as partidas, joga como
nunca jogou e volta ao Brasil dando
orgulho e alegria ao povo. "A Copa é
nossa!" "O penta é nosso!" Explodiu
no Brasil inteiro a alegria do povo brasileiro.
Jogadores, técnico, dirigentes e a
CBF vestiram a camisa e cobriram-se
com a bandeira nacional.
Não eram os mercadores de que os
acusavam. Ricardo Teixeira venceu a
tempestade, e a "família Scolari" desfila com seus meninos travessos dando cambalhotas nas rampas do Planalto.
José Bonifácio, certa vez em Londres, ouviu de um lorde inglês: "Tendes orgulho de ser inglês?". Ele respondeu: "Tenho orgulho de não ser
inglês, e sim brasileiro".
Calculem se tivéssemos nascido nos
Estados Unidos. Aqui, estamos na
glória do penta, e os americanos,
amargando um programa de Bush
que promove uma campanha pela
abstinência sexual!
Nós, alegres; eles, monásticos e tristes.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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