São Paulo, sexta-feira, 05 de julho de 2002

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JOSÉ SARNEY

A cultura do futebol

Um dos setores mais vulneráveis com a globalização é a cultura.
A cultura canônica, na expressão de Houaiss, desmorona-se com a invasão dos enlatados, dos best-sellers, de ritmos, cantores, hábitos, vestuário, alimentação. Tudo se padroniza. Resiste a cultura popular responsável pela identidade nacional.
No Brasil, sua marca é a alegria, que veio da África, dominou o sangue português e incorporou a dança e os folguedos sempre alegres presentes nos rituais indígenas.
A Sérgio Buarque de Holanda escapou, na tese do brasileiro cordial, o componente fundamental da alegria. Essa omissão não é somente dele.
É também de Gilberto Freire e de Caio Prado Júnior, os três nomes fundamentais na historiografia moderna. Nenhum deu importância maior a esse aspecto.
A cultura popular é o forte que salva o Brasil da perda de identidade. É o carro-chefe que nos distingue. Daí a referência muitas vezes feita de forma depreciativa: Brasil, país do futebol; Brasil, país do Carnaval. Acontece que podemos dizer que o Carnaval e o futebol são manifestações do nosso jeito de ser. Não é o Carnaval nem o futebol em si. É o que está dentro deles. A capacidade de associação e de convivência, a ausência de preconceito, a democracia na pluralidade de opiniões, que não se chocam, mas se completam. A cultura da praia, do botequim, do sincretismo religioso. Sempre a cultura da alegria.
Tomo o futebol. Não é somente o jogo, o campo, a bola. Como é diferente um jogo no Brasil de um jogo em qualquer outra parte do mundo. Aqui a torcida não sofre de frieza nem de esgares de violência. É tudo alegria: os refrãos, a prática da paixão ao clube e o culto da opinião sobre a conduta das equipes, que transforma cada torcedor em um técnico e em um jogador. Dos campos, o futebol vem para as casas, para a rua, para os transportes, para o trabalho, como parte da vida. Sempre a alegria. O futebol é uma festa. Não há pobre nem rico, preto, branco ou amarelo, todos estão juntos envolvidos pelo delírio num estádio. Nada mais democrático e igualitário.
Veja o "penta". Havia quem o esperasse. E muitos duvidavam e achavam mesmo impossível. O futebol brasileiro, maior alegria do nosso povo, foi massacrado e desmoralizado nesses dois anos. Os jogadores não prestavam, só queriam saber de dinheiro; os dirigentes eram bandidos; os times, falidos e acabados. O governo só estimulava o refrão negativo de moralizar o futebol. Essa gente, assim tratada, sai, vence todas as partidas, joga como nunca jogou e volta ao Brasil dando orgulho e alegria ao povo. "A Copa é nossa!" "O penta é nosso!" Explodiu no Brasil inteiro a alegria do povo brasileiro.
Jogadores, técnico, dirigentes e a CBF vestiram a camisa e cobriram-se com a bandeira nacional.
Não eram os mercadores de que os acusavam. Ricardo Teixeira venceu a tempestade, e a "família Scolari" desfila com seus meninos travessos dando cambalhotas nas rampas do Planalto.
José Bonifácio, certa vez em Londres, ouviu de um lorde inglês: "Tendes orgulho de ser inglês?". Ele respondeu: "Tenho orgulho de não ser inglês, e sim brasileiro".
Calculem se tivéssemos nascido nos Estados Unidos. Aqui, estamos na glória do penta, e os americanos, amargando um programa de Bush que promove uma campanha pela abstinência sexual!
Nós, alegres; eles, monásticos e tristes.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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