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TENDÊNCIAS/DEBATES
Aborto, embriões e o mea-culpa de Janine
CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS
Ironicamente, os principais responsáveis por difundir essa imagem distorcida do conhecimento científico
são os próprios cientistas
C
OM A vinda do papa Bento 16, o
debate sobre o aborto, bem como sobre a pesquisa científica
com os chamados embriões inviáveis,
ganhou o destaque que se esperava.
De um lado, vociferam os que se dizem defensores intransigentes da vida ("desde a concepção até o seu inevitável declínio"), um grupo bastante
heterogêneo, formado não apenas
por cristãos, na sua maioria católicos,
mas também por fiéis de outras religiões e até por alguns ateus.
Do outro lado, estão os que se proclamam guerreiros incansáveis na
"cruzada" contra o obscurantismo religioso, os que se crêem verdadeiros
"portadores da luz" -que não se percam pela soberba...- e, portanto, detentores inquestionáveis do monopólio da razão.
Uns e outros, a meu ver, estão certos e errados, muito embora por motivos que todos eles parecem fazer
questão de ignorar.
Os que sustentam que as verdades
da fé também devem ser levadas em
conta sempre que é alterado, de forma relevante, o ordenamento jurídico de um Estado estão certos em fazê-lo. Com efeito, toda lei, para ser realmente legítima, não pode passar ao
largo das normas religiosas que norteiam as vidas de milhões de cidadãos,
ainda que elas o façam "apenas" de fato, e não de direito.
Contudo, uma coisa é levar em conta um determinado ponto de vista;
outra, muito diversa, é acatá-lo sem
crítica ou ponderação.
Erram, portanto, os que pretendem
abusar do princípio metodológico da
"escuta ecumênica", em si mesmo
uma importante salvaguarda. Pois
não se pode, impunemente, transformá-lo numa espécie de "imperativo
totalitário" a serviço de uma única
opinião, seja ela a do papa ou a de um
Prêmio Nobel. Afinal, as leis que irão
disciplinar cada uma dessas duas
questões -o aborto e a pesquisa com
os embriões inviáveis- terão vigência
nacional, aplicando-se, indistintamente, aos seguidores de qualquer
credo ou opinião.
Estão certos, por sua vez, os que
afirmam que é necessário discutir esses temas polêmicos também à luz
dos argumentos científicos e da saúde
pública, sopesando, com critério, os
aspectos relacionados à proteção da
saúde da mulher -no caso da legalização do aborto- ou das perspectivas
para o tratamento de moléstias crônico-degenerativas -no caso do aproveitamento dos embriões inviáveis.
Estão errados, todavia, quando sustentam, certamente imbuídos de um
positivismo ingênuo, que a ciência
deve sempre ser tomada como o parâmetro absoluto, como o "fiel da balança do próprio Deus".
Equivocam-se,
portanto, quando descartam qualquer argumento que não reconheçam
como "científico", por julgarem-no
desprovido de objetividade, pouco
importando o domínio a que se refira.
Ao absolutizarem desse modo indevido o poder da ciência, essas pessoas acabam por cometer o mesmo
erro que pensavam eliminar, adorando um ídolo no lugar de outro.
Ironicamente, os principais responsáveis por difundir essa imagem
distorcida do conhecimento científico são os próprios cientistas, muitos
deles desprovidos de uma formação
filosófica que seja digna desse nome.
Tornam-se, por isso, freqüentemente, meros tecnocratas do conhecimento, mais preocupados com a gestão das "verbas de fomento" e a publicação de resultados em "revistas de
impacto" do que com a reflexão sobre
a natureza complexa da ciência.
Além disso, o próprio fazer científico, como qualquer atividade humana,
é transitório e imperfeito e precisa,
sim, ser fiscalizado pelos membros da
sociedade em que se dá. São eles, aliás,
num Estado democrático, os únicos a
ter de fato legitimidade para fazê-lo,
permitindo ou proibindo comportamentos por meio das leis elaboradas
pelos representantes que elegem periodicamente. Abrir mão desse princípio significaria admitir que a práxis
científica está fora do alcance de qualquer controle ético, o que me parece
absurdo.
É realmente uma pena que os integrantes desses dois grupos não decidam, vez por outra, ponderar -não
somente com a razão mas também
com o sentimento- sobre as idéias e
as crenças que sustentam. Se o fizessem, talvez se tornassem mais humildes e, com isso, mais capazes de reconhecer os seus equívocos. Assim como o fez Renato Janine Ribeiro, tempos atrás, num corajoso e sincero
mea-culpa, publicado neste mesmo
jornal, que motivou tão intensas reações, precisamente porque foi lúcido.
CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS, 47, médico, neurocientista e escritor, é doutor em lingüística pela Universidade de Toulouse-Le Mirail (França), professor da pós-graduação em morfologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador da Unidade de Reabilitação Neuropsicológica.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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