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São Paulo, terça-feira, 05 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Questão social e questão policial

DENIS LERRER ROSENFIELD

Na inatividade que o tem caracterizado, o atual governo teima em encobrir o óbvio, a saber, o caráter político do MST em ações que estão manifestamente ferindo o Estado de Direito e colocando o país num clima de instabilidade política. Seria risível, não fosse verdadeiro, que o atual governo se gasta em discursos ineficazes, que têm como único propósito fazer de conta que ele estaria fazendo alguma coisa.
A realidade é que o MST e suas siglas afins, os "MS-alguma coisa", têm orquestrado em todo o país ações de invasão de propriedades rurais e, agora, urbanas, de ocupação de pedágios, de saques, de destruição de unidades de pesquisa, ditando e afirmando aquilo que deve ou não ser feito. Aproveitando-se de que o governo agora é do PT, os líderes do movimento já não ocultam em seus discursos os seus propósitos propriamente revolucionários. As recentes manifestações de João Pedro Stedile e de outros líderes apenas tornam mais claro o que o olhar atento e crítico pode facilmente perceber.
No governo Lula, ao contrário do que tem sido reiterado por ministros que procuram encobrir a realidade, as ações do MST tiveram um incremento em relação a igual período do ano passado e são consideravelmente maiores em relação ao segundo semestre do mesmo ano, quando, por razões eleitorais e pela perspectiva de conquista do poder, elas diminuíram. Estamos vivendo um período de exacerbação das lutas políticas, em que a estratégia revolucionária do MST põe à prova o governo petista.
Ademais, quando da ascensão de Lula ao poder, o MST não apenas continuou a ser o interlocutor privilegiado do governo, como se apoderou de uma fatia considerável do poder de Estado, vindo a determinar quais leis deveriam ser ou não aplicadas, quais políticas deveriam ser ou não implementadas. Assim, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, numa conjunção ainda mais íntima entre as alas radicais do PT e do MST, o Incra e a Ouvidoria Agrária Nacional terminaram por ser correias de transmissão de um mesmo posicionamento político. O jogo de cena, que é apenas estratégico, consiste em ocultar o caráter eminentemente político das ações em curso, tendo como social apenas a sua forma de justificação.



Toda vez que os diálogos com o MST aumentam, não há nenhum arrefecimento de suas ações

A separação entre os setores radicais do PT e o MST é somente mais uma encenação desse perigoso teatro político, pois eles se confundem e identificam -tanto no partido quanto na estrutura do "movimento". São "companheiros". Por que não "camaradas", para utilizarmos uma terminologia mais adequada?
O governo Lula vive, assim, uma esquizofrenia profunda, ainda mais acentuada por colocar, lado a lado, num mesmo governo, os ministros Rodrigues e Rossetto, um representando o agronegócio, o outro do MST, ou seja, um representado a grande propriedade produtiva, motor da economia nacional, o outro procurando desestabilizá-la. Como pode a questão social no campo brasileiro ser resolvida, se as contradições são potencializadas politicamente e trazidas para dentro do aparelho de Estado?
Ora, se o governo estiver genuinamente interessado em resolver a questão social, que é certamente a mais urgente, ele deve começar por desvincular essa solução das propostas do MST. O problema social exige um tratamento específico, tanto rural quanto urbano; exige políticas econômicas de viabilização das propriedades rurais do ponto de vista de sua rentabilidade e produtividade, que as desvincule de suas conotações políticas. Se o interlocutor do governo permanecer o MST, o problema sociopolítico só se agravará, pois, quanto mais suas exigências forem atendidas, mais se multiplicarão suas ações.
Mesmo se o atual governo procedesse a uma maior distribuição de terras com financiamentos correspondentes, tendo o MST como interlocutor privilegiado e real detentor do poder da política agrária, a equação política não seria alterada, pois a sua finalidade é política, e não social. Toda vez que os diálogos com o MST aumentam, não há nenhum arrefecimento de suas ações.
Logo, não deixam de causar espanto as declarações reiteradas de ministros de que o problema é social, e não policial, de que a lei será respeitada, de que não haverá criminalização dos movimentos sociais e outras do gênero. Curiosamente, são declarações que surgem não quando o MST incrementa suas ações, mas quando os proprietários rurais ameaçam reagir, como se estes fossem a causa das ações do MST. Confunde-se a causa com o efeito.
O mais grave, porém, é que, em seus exercícios constantes na mídia, esses diferentes ministros procuram sustentar o insustentável: o MST seria um mero movimento social, sem conotações políticas e revolucionárias. Ou seja, o governo atual está procurando esquivar essa questão central, traduzindo-a como se fosse policial.
O que o governo não quer ver é um processo de subversão das regras democráticas, do Estado de Direito, no qual o que eles denominam "policial" é nada mais do que a expressão dessa perigosa equação social e político-revolucionário que estamos vivendo. A resposta tem sido a demagogia. Até quando?

Denis Lerrer Rosenfield, 52, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política".


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