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São Paulo, terça-feira, 05 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Você vai pagar com traição?

GEDDEL VIEIRA LIMA

Os bons índices de popularidade, o respaldo de setores importantes da mídia e o relativo curto período de tempo de governo deveriam pesar como ponderação na manifestação das minhas discordâncias em relação à administração do presidente Lula. É lógico, do ponto de vista pragmático, supor ser politicamente desgastante criticar o desempenho do PT -que, por expectativa ou por fé, ainda parece satisfatório a uma parcela da opinião pública.
Mas, fiel ao temperamento e ao estilo que me impelem a dizer o que penso, atrevo-me a provocar algumas reflexões sobre uma sombra perigosa para o governo Lula nesse aparente panorama positivo. O espaço privado de luz é justamente o das idéias. Digno seria que as atitudes do PT de hoje fossem tão firmes como o discurso do PT de ontem. Mas, quando se propõe algo em que não se acredita, o resultado é a tibieza.
Emergiu com força na discussão da reforma da Previdência a percepção de que os planos do governo são anunciados com leviandade proporcional ao tamanho das promessas de campanha. O presidente Lula foi pessoalmente ao Congresso, com os 27 governadores e 22 ministros, levar o projeto. Um ato simbólico que referendava o caráter categórico da reforma: os números haviam sido checados e recalculados, seria o fim do déficit (agora o PT admite o déficit) e o ataque fatal às históricas distorções no sistema previdenciário.
Logo depois, a surpresa. O governo recua na primeira resistência. O projeto imutável fragilizou-se. E o recuo atabalhoado estabeleceu incoerências, rompendo a isonomia. É paradoxal manter a paridade e a integralidade para os atuais servidores, conservando ao mesmo tempo a taxação dos atuais inativos. Se preservo os direitos dos servidores hoje na ativa, remetendo a correção da distorção aos futuros agentes públicos, nada mais legítimo e equânime que preservar os direitos dos atuais inativos.



O PT tem se apropriado de patrimônios administrativos do governo Fernando Henrique

Ou as mudanças valem para todos agora, ou devem valer para todos no futuro. A injustiça do tratamento desigual para os inativos se aprofunda no cenário de preços elevados de medicamentos de uso continuado, juros escorchantes, economia recessiva, desemprego. E, nessas circunstâncias, a aposentadoria cada vez mais representando o sustento de toda a família. Para que se mantenha a coerência filosófica da reforma depois dos recuos do governo, a não-taxação dos atuais inativos é um imperativo.
Além de a medida já ter sido derrotada quatro vezes no Congresso e de tratar-se de direito adquirido, de ato jurídico perfeito, pesa agora também a necessidade de assegurar o que é justo, coerente e íntegro. O afago aos servidores ativos jogou a sanha arrecadatória do governo exclusivamente nas costas dos inativos. Espero que o Congresso e meu partido, o PMDB, não deixem essa conta sobrar para os aposentados, que não têm grande poder de mobilização como os que se encontram em atividade. E, ao trazer essas reflexões, faço-o autorizado por quem sempre defendeu a necessidade de uma reforma consistente da Previdência, que a viabilize. Igualdade, no entanto, e o mínimo de coerência são pedras basilares sem as quais não se sustenta nenhuma mudança.
O PT de hoje, felizmente, abandonou a intransigência que caracterizava o PT de ontem, substituindo-a, infelizmente, pela falta de firmeza na ação e de clareza nas idéias. A inversão de posturas se evidencia, sobretudo, pela insistência com que o presidente Lula e seus auxiliares repetem a falácia da "herança maldita".
Recorre-se a tal "herança" de forma inteligentemente seletiva. Afinal o PT tem se apropriado, ainda que indevidamente, de patrimônios administrativos do governo Fernando Henrique. Foi apropriação indébita, por exemplo, receber nos EUA o prêmio pelo programa de combate à Aids, sem registrar que a homenagem se referia ao projeto criado e implementado no governo anterior.
Da mesma forma, o PT apossou-se do sucesso da agricultura brasileira conquistado pelo trabalho corajoso do ex-ministro Pratini de Moraes. Tão verborrágico nas críticas às políticas sociais do governo passado, o governo Lula, também desonestamente, calou-se frente os avanços no Índice de Desenvolvimento Humano brasileiro, medido pela ONU.
Para além do que seja razoável, jactam-se de ter, na economia, resgatado efeitos da seletiva "herança maldita" que fizeram o dólar disparar, o risco Brasil subir e o fluxo de financiamento externo cair. Outra vez a imprudência de omitir que a economia se desarrumou quando ficou nítida a perspectiva de vitória do PT de ontem, pela insegurança que o partido causava aos agentes econômicos nacionais e internacionais. Hoje renegam suas crenças (seriam crenças?) para guiar a economia usando exageradamente o manual que o Pedro Malan esqueceu na gaveta da Fazenda.
Com o passar do tempo, a falta de idéias acabará minando a confiança da sociedade e da mídia. Poderá não haver mais ponderações sobre as contradições do governo. De minha parte, com a postura de quem é fiel à decisão das urnas, contribuirei com a crítica construtiva e com o meu voto na Câmara pela implantação das medidas que conduzam o Brasil ao paraíso que prometeram. Torço para que o presidente Lula atenda às expectativas da sociedade que o elegeu. Prefiro não ver virar hino o samba de Beth Carvalho entoado já por muitos, na passagem de algum integrante do PT: "Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão".

Geddel Vieira Lima, 44, deputado federal pelo PMDB-BA e presidente do partido no Estado, é o primeiro-secretário da Câmara dos Deputados.


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