São Paulo, terça-feira, 05 de novembro de 2002

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

A transformação possível

A tarefa do novo governo se define por contraste com dois erros. Compreender por que rejeitá-los e como substituí-los é vislumbrar o rumo que permitirá ao Brasil diminuir a desigualdade no ato de retomar o desenvolvimento.
O primeiro erro é o de identificar no compromisso com o sacrifício fiscal o triunfo dos interesses financeiros. É verdade que os países ricos não praticam o que nos recomendam: aperto fiscal em hora de recessão. Não é, porém, para agradar ao capital financeiro que devemos aumentar o superávit fiscal; é para nos tornarmos mais independentes dele. A coincidência superficial desse imperativo de independência com as reivindicações dos credores do Estado é vantagem a ser aproveitada.
O segundo erro é o de reduzir a obra do futuro governo ao uso da ortodoxia econômica como base para as políticas sociais compensatórias. Superadas as fantasias ideológicas, o que sobraria para o governo das forças progressistas no Brasil seria a social-democracia, entendida como o esforço do Estado para corrigir, por programas sociais, as desigualdades geradas pelo mercado. Os conservadores pacientes dizem entre seus botões: que bom que a esquerda ganhou no Brasil. Seu governo exorcizará a idéia da alternativa e confirmará o que o resto do mundo já sabe: não há alternativa; só há a humanização do inevitável.
Peca, em primeiro lugar, por incompreensão histórica. A social-democracia não foi inventada na Europa em 1946. Resultou de gerações de inovação institucional, democratizadoras da economia e do Estado, sob o trauma de lutas sociais e de guerras. As políticas sociais foram e são instrumento meramente acessório. Para caminhar em direção semelhante, sem conflitos violentos, temos de democratizar oportunidades e de aprofundar, por meio da valorização gradativa dos salários, o mercado interno. A humanização da sociedade passa pela democratização do mercado.
Falha, em segundo lugar, por não interpretar corretamente os requisitos para que o Brasil volte a crescer e comece a ser justo. O restabelecimento da confiança financeira é condição necessária, mas não suficiente. Precisamos mobilizar, em prol de um projeto democratizante que ainda está longe de ser consensual, um conjunto de reformas que já conta com amplo apoio: simplificação dos impostos para manter a receita, mas atenuar o ônus sobre a produção; reforma previdenciária para controlar a despesa e para canalizar a poupança de longo prazo ao investimento de longo prazo, diminuindo nossa dependência do capital estrangeiro; consequente reforço do poder de barganha do Estado para baixar juros sem quebrar contratos; política industrial e agrária que estimule a formação de grandes empresas nacionais capazes de competir em escala mundial ao mesmo tempo em que amplie o acesso ao crédito, à tecnologia e ao conhecimento em favor dos empreendedores emergentes. O eixo do crescimento includente e igualizador está em combinar tais medidas dinamizadoras com iniciativas que democratizem as oportunidades econômicas e educativas e que fortaleçam a participação dos salários na renda nacional.
Não existe pronta e acabada a doutrina econômica que mapeie esse caminho. Nem precisa. Basta ter idéia clara da direção e dos próximos passos, amealhando, com voz baixa e com cabeça arrojada, exemplos, êxitos e apoios. Visão abrangente, vontade férrea, confiança serena na nossa capacidade de combinar moderação e gradualismo com ímpeto transformador - é disso que o Brasil precisa para que se cumpra a vontade nacional expressa em 27 de outubro.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.

Internet: www.law.harvard.edu/unger


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