São Paulo, terça-feira, 05 de novembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

O poder embeleza?

RIO DE JANEIRO - Deus é testemunha de que nada tenho contra os intelectuais, embora me recuse a ser um deles. Para todos os efeitos, sou um profissional, bom, mau, talvez mais ou menos, não passo disso. Não sei consertar torneiras, fazer instalações elétricas, vender terrenos a prestação, nem mesmo plantar batatas -apesar de frequentemente me aconselharem a isso. Faço o que posso. Um defeito físico me obrigou a escrever antes de aprender a falar.
Procuro entender os intelectuais, que, de certa forma, são também operários. Já li e ouvi teorias e palpites sobre as relações dos intelectuais com o poder. Mas, sinceramente, não gosto quando vejo intelectuais, gente de peso, gente que eu admiro e respeito, cercando autoridades, levando-lhes apoio, solidariedade, todos mais ou menos dispostos a colaborar para o que consideram "bem público".
Fiquei estarrecido quando um vizinho, que se mudou do Rio para Brasília, garantiu-me que "o poder embeleza". Era empreiteiro e, se não ficou mais belo, pelo menos ficou mais rico.
Já o intelectual não tem a necessidade de ficar mais belo e, se ficar mais rico, tanto melhor, mas não é obrigação dele. Evidente que ele tem o direito e até mesmo o dever de ter uma opinião, de ser contra ou a favor disso ou daquilo. Mas de forma institucional, em nível apartidário, e, sobretudo, sem comprometimento oficial.
Quando Malraux aceitou ser ministro de De Gaulle, eu senti um frio na alma -como naquele bolero homônimo. O autor de "A Condição Humana" chegou ao poder, mandou limpar a fachada da Notre Dame e mudou a decoração de algumas estações do metrô parisiense.
Enquanto isso, Sartre subia nos capôs dos carros e nos caixotes de frutas para continuar vendendo suas idéias -fossem elas boas ou más. Sartre era feio, mesmo assim, recusou-se a se embelezar com o poder. Malraux era bem mais bonito. Ficou mais feio depois do poder.


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