UOL




São Paulo, quarta-feira, 05 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Nem muda, nem surda

LUIZA NAGIB ELUF

O símbolo da Justiça é uma mulher segurando uma balança, com os olhos vendados. Ela não enxerga porque a lei é igual para todos e o direito será dado a quem o tem, independentemente do status social da pessoa que o pleiteia. Isso não significa que a Justiça seja cega, mas que tratará a todos igualmente. Depois de realizado o julgamento, é possível retirar a venda dos olhos...
Em decorrência dessa constante preocupação de manter a imparcialidade, os membros do Poder Judiciário acabaram se distanciando da população. Ao não emitirem opinião acerca de assuntos polêmicos, não se pronunciarem fora dos autos, não participarem de discussões de temas de interesse da sociedade e até restringirem os amigos, tornaram-se desconhecidos e, por isso, temidos. Até o presidente da República, pessoa informada e esclarecida, chegou a dizer que o Judiciário teria uma "caixa-preta", dando a entender que há mistérios nas atividades dos julgadores que precisam ser esclarecidos.
Foi um engano. Não existem tais obscuridades, mas situações fáceis de ser compreendidas. Os processos se multiplicam assustadoramente e, por mais que os profissionais da área se esforcem, os atrasos são inevitáveis. A Justiça padece dos mesmos problemas dos demais serviços prestados pelo Estado, ou seja, é deficitária e pouco eficiente.
É claro que a receita para resolver o problema existe e deve ser urgentemente aplicada. É preciso simplificar os procedimentos e diminuir o número de recursos; aproveitar melhor os quadros qualificados, como, por exemplo, os membros do Ministério Público de segunda instância, que hoje são subutilizados em suas atuações. Além disso, seria importante regionalizar os tribunais, levando-os para as cidades grandes do interior e evitando a concentração dos recursos nas capitais. Acima de tudo, seria indispensável racionalizar o serviço dos tribunais superiores, isto é, do STJ e do STF, onde há poucos juízes e as demandas costumam levar muito tempo para serem julgadas. O ideal é que nenhum processo se alongue por mais de dois anos para ser definitivamente resolvido. Ninguém merece esperar mais do que isso para obter a prestação jurisdicional que requereu.


Com os canais abertos aos reclamos da população, será possível ao Judiciário ouvir o povo e atender melhor as demandas
Ainda assim, mesmo que seja resolvido o problema da morosidade, a Justiça terá de fazer o investimento necessário para se comunicar com a destinatária dos seus serviços, a sociedade.
Em palestra no 18º Congresso Brasileiro de Magistrados, o publicitário Duda Mendonça afirmou que os juízes deveriam estar presentes nos meios de comunicação, falando no rádio, na televisão, nos jornais, pois "o fato de a Justiça ser cega não significa que ela precise ser muda" (Folha, 25/10/03). Nem muda, nem surda, podemos acrescentar.
A Justiça só tem uma saída, que é se aproximar do povo. Deixar o isolamento, que talvez fosse justificável em outros tempos, mas hoje não mais. O Brasil tem 170 milhões de habitantes e é impossível conversar com os jurisdicionados sem que seja através dos veículos de comunicação de massa. Se o povo não entende, não conhece e está insatisfeito com o trabalho do Judiciário, qualquer campanha deletéria contra seus membros encontrará campo fértil na opinião pública. Como se viu durante a reforma da Previdência, bastou que pessoas mal informadas ou mal-intencionadas alardeassem que os vencimentos dos magistrados e membros do Ministério Público alcançavam cifras enormes, para que o povo acreditasse e passasse a odiar justamente quem sempre lutou para bem servi-lo.
Por essa razão, o silêncio terá de terminar. Os meios de comunicação precisarão ser usados pelos aplicadores da Justiça, assim como são constantemente usados pelos Poderes Executivo e Legislativo. Ainda conforme declarações de Duda Mendonça, os demais Poderes da República "aparecem mais na imprensa porque souberam se profissionalizar; será que os juízes têm uma boa assessoria de imprensa?".
Na verdade, será preciso ir além da assessoria de imprensa, buscando uma estratégia de marketing que consiga mostrar à população o que realmente acontece nos meandros da Justiça.
A discussão que virá com a reforma do Judiciário, em estudo no Ministério da Justiça, no Congresso e no próprio Judiciário, somente será bem-sucedida, no sentido de atacar e reformar os pontos que realmente melhorem a tramitação dos processos se a sociedade puder acompanhar as propostas com total transparência. Espera-se que a reforma do Judiciário venha para atender aos anseios da cidadania, não para trazer mais economia ao Poder Executivo.
Ao mesmo tempo, com os canais abertos aos reclamos da população, será possível ao Judiciário ouvir o povo e atender melhor as demandas.
Os caminhos da democracia exigem um esforço de comunicação inédito para a Justiça, mas extremamente benéfico. Desde os tempos do Chacrinha que tudo mundo sabe: quem não se comunica se estrumbica.

Luiza Nagib Eluf, 48, é procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e autora de "A Paixão no Banco dos Réus", entre outros livros. Foi secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça (governo Fernando Henrique Cardoso).


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Eduardo Matarazzo Suplicy: Direito de ser sócio do Brasil

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.