São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006

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Evo e os mísseis do ódio

EDUARDO RODRÍGUEZ VELTZÉ


Em 2005, fui presidente da Bolívia. Hoje, abro ao mundo a verdade sobre um assunto ingrato que envolve armas, política, rancor e injustiça


EM 2005 , quando fui presidente da Bolívia, a comunidade internacional defendeu a solução democrática para uma grave crise política e me ofereceu apoio incondicional. Cumpri meu dever para com os bolivianos e para com a democracia. Hoje, abro a meu país e ao mundo a verdade sobre um assunto ingrato que envolve armas, política, rancor e injustiça.
Há mais de uma década, o Exército da Bolívia recebeu como donativo um lote de 30 mísseis terra-ar ("manpads"), os quais, segundo informes oficiais, não respondiam a nenhuma estratégia. Sua manutenção envolvia dificuldades, e organismos como a OEA, a ONU e a Oaci recomendavam cautela, como salvaguarda da aviação civil diante do terrorismo.
No final de setembro de 2005, compareci, em Brasília, à reunião da Comunidade Sul-Americana de Nações. Ao mesmo tempo, na Bolívia, tinha início uma operação militar em que oficiais bolivianos entregaram esses mísseis a funcionários da missão militar norte-americana para serem enviados aos EUA para sua desativação final. Eles atuaram sem cumprir os procedimentos regulamentares, sem ordem de autoridade superior e sem o conhecimento nem a autorização do presidente da República.
O assunto virou tema da política eleitoral, e o então deputado e candidato presidencial Evo Morales o utilizou em sua campanha política, divulgando declarações contraditórias.
Precisamente por isso, e para preservar a imparcialidade de meu governo, depois de cumprir a tarefa prioritária de meu mandato constitucional -ou seja, garantir a realização das eleições nacionais-, reagi imediata e objetivamente ao informe sobre os mísseis feito pelo ministro da Defesa e o comandante-geral das Forças Armadas.
Determinei a destituição imediata do comandante-geral do Exército e seu processamento, e o de outros generais envolvidos, pela Justiça militar; aceitei a renúncia do ministro da Defesa; reiterei a ordem de cancelar qualquer compromisso com a missão norte-americana que previsse compensação econômica pela desativação; instruí o chanceler para comunicar à embaixada dos EUA o protesto diplomático da Bolívia pela atuação arbitrária dos militares no traslado dos mísseis; e informei o presidente e o vice-presidente eleitos dos fatos.
Assim, é paradigmática a ação "original" contra mim que persiste em mover Evo Morales por supostos delitos de submissão ao inimigo, espionagem, revelação de segredos e outros (procedentes só em perigo de guerra), pelos quais posso ser condenado a 30 anos de prisão em processo de única instância na Suprema Corte, sem possibilidade de recurso, além de ficar incapacitado para o exercício futuro de qualquer cargo público.
Há graves irregularidades: o procurador-geral, desmascarado como leal ao governo Evo, formalizou minha acusação, sem provas, quando eu estava fora do país, sem me informar das acusações, sem receber minha declaração e sem assegurar meu direito à defesa. A Suprema Corte tampouco esteve à altura das regras universais da imparcialidade para garantir meus direitos nas primeiras autuações. Dói ver a Corte que presidi atropelar procedimentos elementares para submeter-se às cominações do Executivo.
Além do abuso do sistema, o presidente calunia publicamente. Em discurso proferido ante o Congresso, disse que assinei documentos e recebi quantias em dinheiro da embaixada americana pelos mísseis, fatos desmentidos documentalmente e pelo embaixador. Longe de preservar sua condição e de honrar a independência dos Poderes, Morales se converte em acusador, fiscal e juiz. Acusa, ameaça e, sem ouvir a ninguém, condena publicamente. Seria possível pensar que ele reativou os mísseis destruídos para transformá-los e multiplicá-los em munição de ódio e de vingança.
Se Morales acusa o ex-presidente de traição à pátria, de revelar segredos e praticar a espionagem em favor de uma "nação inimiga", deveria ser coerente na acusação e no raciocínio.
Por que não examina meu protesto diplomático e questiona a atuação de militares bolivianos e norte-americanos? Ao contrário, seu governo renova embaixadores, e ele visita os EUA.
Por que não acompanha os processos abertos contra os militares envolvidos? Será porque o então comandante do Exército se disse "evista"? Por que o procurador-geral não os inclui no requerimento acusatório?
Apesar de todo esse triste espetáculo de enfrentamentos improdutivos, pedi publicamente a Evo Morales que baixe seu dedo acusador e estenda a mão da reconciliação, que se abra para o reencontro que milhões de bolivianos reclamamos para encontrar dias de paz, harmonia e progresso, dentro e fora do país, e não dias de enfrentamento, como hoje, lamentavelmente, acontece.

EDUARDO RODRÍGUEZ VELTZÉ , 50, foi presidente de transição da Bolívia de junho de 2005, após a renúncia de Carlos Mesa, a janeiro deste ano, quando assumiu Evo Morales. Foi presidente da Corte Suprema de Justiça da Bolívia (2004-2005).
Tradução de Clara Allain .


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