São Paulo, quinta-feira, 05 de dezembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Isto acima de tudo

RIO DE JANEIRO - Estou posto em sossego, não como a linda Inês do poema camoniano, mas como quem não tinha nada a fazer e folgava na ociosidade inesperada daquela tarde. O telefone tocou. Ouvi a secretária dizer que eu não estava, mas logo depois tomou o recado, um amigo muito querido, que não via havia anos.
Desmentindo a secretária, eu estava para ele, pedi perdão pela desculpa esfarrapada que ela dera, aleguei os chatos que alugam a gente no telefone ou na internet e perguntei pelas novidades.
As novidades eram uma só e eu era a novidade em si. O meu amigo fora almoçar num restaurante que está na moda e me vira com uma moça deslumbrante, trocando carícias num dos cantos mais escondidos do enorme salão que se abre para o mar. Depois, quando já tínhamos esgotado toda a galinhagem desses encontros, eu me levantei, a moça deslumbrante, de pernas esculturais, também se levantou e caminhamos abraçados, para deleite de todos os executivos que ali almoçam, gregários e solitários ao mesmo tempo.
Ouvi a novidade com uma bruta decepção. Deveria haver por aí um clone meu, acompanhado de moças deslumbrantes, de pernas esculturais e fazendo galinhagens em público num restaurante que nunca frequentei. Disse isso para o meu amigo, mas não o convenci. Era eu -jurava ele. Descreveu a roupa com que eu estava e, por coincidência, era a mesma que eu usava: calça bege e camisa preta, Lacoste, com o jacarezinho no peito.
Desanimei de convencê-lo. Afinal, tinha motivo até para ficar lisonjeado, mudei de assunto, mas ele insistia. Queria saber onde encontrara aquela moça e o que ela vira em mim, vergado ao peso de minhas penas. Qual teria sido o meu truque, fosse camarada, desse a receita para que ele também fizesse galinhagem com moças deslumbrantes, de pernas esculturais.
Lembrei o "Hamlet" e repeti Polônio: "Isto acima de tudo, sê fiel a ti mesmo".


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