São Paulo, quinta-feira, 05 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OTAVIO FRIAS FILHO

Tradição cordial

O clima de "cordialidade" que preside a atual mudança de governo faz lembrar, em escala menor, o longo repertório de transições pacíficas na história brasileira. Essa tradição alimenta a fantasia de que o brasileiro seria, "por natureza", avesso à violência, algo desmentido seja no dia-a-dia, seja num episódio como Canudos, cujo registro literário completa cem anos.
Mesmo assim, é forçoso reconhecer que conflitos armados como o de Canudos ou, dez anos depois, o do Contestado, são casos raros. Não foram muitas as revoltas populares como essas, sem participação de dissidências da elite, que se organizaram e radicalizaram a ponto de confrontar os poderes da ordem até serem esmagadas.
É outra a tradição local. Com regularidade incrível, ela pode ser resumida no seguinte roteiro. Insatisfações populares dão área de manobra a uma dissidência da elite. Prepara-se um confronto, ocorrem escaramuças, mas o enfrentamento é evitado por uma conciliação que desmobiliza a massa e reabsorve os antigos mandatários no novo condomínio de poder.
As principais mudanças de natureza institucional -a Independência e a República- aconteceram assim. Ao longo do século 20, quando ganhou impulso a modernização do país, o mesmo paradigma se repetiu no desenlace de sucessivas crises entre o novo e o antigo: a Revolução de 30, a queda do Estado Novo, a derrocada do regime militar.
Não vamos encontrar as raízes dessa tradição na "alma" do brasileiro. São fatores ligados à nossa formação histórica que ajudam a explicá-la: grande mobilidade pessoal entre as classes, justificada cautela em agitar o barril de pólvora das desigualdades abissais, pragmatismo de uma elite sem tradição de dogmatismo ideológico ou racial, desestruturação social.
São bem conhecidos a crítica e o elogio da tradição conciliatória. Ela é responsável pela incrível demora do Brasil -em relação a seu desenvolvimento material e já hoje institucional- em superar as carências agudas que ainda devastam cerca de um terço da população. As revoluções são de araque, a História funciona como farsa: nada muda de verdade.
O elogio vai na direção contrária. Revoluções de verdade podem ser bonitas no papel, mas deixam, vitoriosas ou não, um saldo terrível de sangue e sofrimento. Viabilizam, às vezes artificialmente, mudanças que viriam de toda forma. Prometem invariavelmente muito mais do que podem cumprir e, não raro, executam programas que tinham pouco a ver com suas intenções.
Os apologistas da conciliação alegam que o "ritmo" brasileiro reproduz os grandes saltos da humanidade sem os traumas de origem que os acompanharam. Neste momento, em que o governo Lula ainda se equilibra entre esperança e realidade, mudança e composição, não custa fazer votos de que consiga reunir a crítica e o elogio da tradição "cordial".


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Isto acima de tudo
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.