|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OTAVIO FRIAS FILHO
Tradição cordial
O clima de "cordialidade" que
preside a atual mudança de governo faz lembrar, em escala menor, o
longo repertório de transições pacíficas na história brasileira. Essa tradição
alimenta a fantasia de que o brasileiro
seria, "por natureza", avesso à violência, algo desmentido seja no dia-a-dia,
seja num episódio como Canudos, cujo registro literário completa cem
anos.
Mesmo assim, é forçoso reconhecer
que conflitos armados como o de Canudos ou, dez anos depois, o do Contestado, são casos raros. Não foram
muitas as revoltas populares como essas, sem participação de dissidências
da elite, que se organizaram e radicalizaram a ponto de confrontar os poderes da ordem até serem esmagadas.
É outra a tradição local. Com regularidade incrível, ela pode ser resumida
no seguinte roteiro. Insatisfações populares dão área de manobra a uma
dissidência da elite. Prepara-se um
confronto, ocorrem escaramuças,
mas o enfrentamento é evitado por
uma conciliação que desmobiliza a
massa e reabsorve os antigos mandatários no novo condomínio de poder.
As principais mudanças de natureza
institucional -a Independência e a
República- aconteceram assim. Ao
longo do século 20, quando ganhou
impulso a modernização do país, o
mesmo paradigma se repetiu no desenlace de sucessivas crises entre o novo
e o antigo: a Revolução de 30, a queda
do Estado Novo, a derrocada do regime militar.
Não vamos encontrar as raízes dessa
tradição na "alma" do brasileiro. São
fatores ligados à nossa formação histórica que ajudam a explicá-la: grande
mobilidade pessoal entre as classes,
justificada cautela em agitar o barril de
pólvora das desigualdades abissais,
pragmatismo de uma elite sem tradição de dogmatismo ideológico ou racial, desestruturação social.
São bem conhecidos a crítica e o elogio da tradição conciliatória. Ela é responsável pela incrível demora do Brasil -em relação a seu desenvolvimento material e já hoje institucional-
em superar as carências agudas que
ainda devastam cerca de um terço da
população. As revoluções são de araque, a História funciona como farsa:
nada muda de verdade.
O elogio vai na direção contrária.
Revoluções de verdade podem ser bonitas no papel, mas deixam, vitoriosas
ou não, um saldo terrível de sangue e
sofrimento. Viabilizam, às vezes artificialmente, mudanças que viriam de
toda forma. Prometem invariavelmente muito mais do que podem
cumprir e, não raro, executam programas que tinham pouco a ver com suas
intenções.
Os apologistas da conciliação alegam que o "ritmo" brasileiro reproduz os grandes saltos da humanidade
sem os traumas de origem que os
acompanharam. Neste momento, em
que o governo Lula ainda se equilibra
entre esperança e realidade, mudança
e composição, não custa fazer votos de
que consiga reunir a crítica e o elogio
da tradição "cordial".
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Isto acima de tudo Próximo Texto: Frases
Índice
|