|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOSÉ SARNEY
Um peru em Bagdá
Peço ao leitor que me perdoe.
Ando tão por conta com o que o
George W. Bush está fazendo com o
seu país e conosco que não consigo
deixar de repicar o tema.
Na sexta-feira passada, não resisti
quando vi aquele jumento terrorista
exibido como um troféu obtido na
Guerra do Iraque. Afinal, descobriram
uma das pontas do novelo das secretas
armas de destruição em massa.
Nesta semana, abrimos os jornais e o
que vimos foi, em vez do jumento, o
presidente da maior nação do mundo
com uma grande bandeja, mostrando,
com um sorriso de felicidade, um peru adornado por batatas, uvas e figos,
tostado à moda da Sadia, que ele foi
comer em Bagdá, numa viagem secreta, e passar duas horas e meia com os
pobres soldados que lutam ali e não
sabem por que nem por quem. E sua
declaração ainda é mais chocante: "Eu
estava procurando uma refeição
quente. Obrigado por me convidarem
para o jantar. Não consigo imaginar
um pessoal tão bacana para o jantar de
Ação de Graças". Nada verdade: o peru era frio e Bush não fora convidado
por ninguém, realizava uma viagem
de marketing eleitoral, com vistas às
eleições de 2004.
É o presidente dos Estados Unidos
que fala essas futilidades, esquecendo
o heroísmo desses jovens patriotas
que acreditam na América, e nada diz
sobre a missão que eles representam,
nada diz sobre a guerra que eles enfrentam, nenhuma grandeza sobre o
desastre que é o Iraque, nada sobre a
gravidade desse conflito sem saída.
Como Roosevelt, Lincoln ou Kennedy
se comportariam numa situação dessas?
O Dia Nacional de Ação de Graças é
uma das datas mais respeitadas pelo
povo americano. Sua origem está no
agradecimento a Deus pela graça da
vida e na comemoração de uma boa
colheita. Foi assim que, em 1621, os
"pilgrims", os peregrinos do Mayflower, agradeceram os primeiros frutos
da terra prometida. Colheita que era
festejada com os índios, porque os índios os ensinaram a plantar, já que
eles não sabiam ainda os segredos da
terra americana. Davam graças a Deus
e à paz.
Bush vai comemorar e agradecer a
guerra. O governo americano, com
medo da opinião pública, fechou a base de Dover, aonde chegam os soldados mortos, para que os corpos não
sejam fotografados pela imprensa. Ele
não compareceu a nenhuma cerimônia fúnebre e, por isso mesmo, tem sido criticado por republicanos e por
democratas.
Todos pensávamos que envolver
Deus no inferno das guerras fosse coisa de um passado primitivo. Já estava
em Camões: "Conheça, pelas armas,
quanto excede / A lei de Cristo à lei de
Mafamede".
Lutero é acusado de ter sido o autor
intelectual do assassinato dos camponeses em Frankenhausen. Levado pelo fanatismo, sustentou que "o império deste mundo não pode subsistir
sem a desigualdade das pessoas". O
padre Vieira pediu a Deus que tomasse parte nas batalhas contra os holandeses que invadiram a Bahia. São Luís,
cruzado contra os albigenses, mandou
matar todos os cidadãos de Béziers na
certeza de que Deus saberia reconhecer, entre os mortos, os seus.
Agora, séculos e séculos depois,
Bush come peru usando o nome de
Deus para matar os infiéis. Lembrem-se os leitores da fotografia e rezem comigo pelos mortos americanos e iraquianos, que não têm direito a flores
nem a peru.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Claudia Antunes: O espetáculo do grampo Próximo Texto: Frases
Índice
|