São Paulo, segunda-feira, 05 de dezembro de 2005

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JOÃO SAYAD

Calma

Nasci depois da Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil era um dos destinos preferidos dos europeus que fugiam da guerra e da pobreza. Vinham "fazer a América". Seu João Papudo, o guarda noturno da rua, era alemão. Seu Francisco, português, trabalhava como jardineiro. D. Elvira, costureira, era espanhola. A Maria de minha casa tinha vindo de Aracaju.
Na adolescência, a minha geração se emocionou com o suicídio de Getúlio, o assassinato de Kennedy, a vitória da revolução cubana apoiada pelos americanos, a eleição de JK, a construção de Brasília, a marcha para o oeste e o primeiro automóvel brasileiro.
Foi fácil arranjar o primeiro emprego, mesmo depois do golpe de 64. Em compensação, perdemos liberdade e tranqüilidade. Chico Buarque pedia socorro aos bandidos: "Chame o ladrão! Chame o ladrão!".
Muitos foram estudar no exterior. E voltavam, pois os salários no Brasil eram maiores. A USP pagava mais que o FMI e o Banco Mundial. A direita afirmava que a distribuição de renda era concentrada por causa dos altos salários do pessoal com educação universitária.
Em 81 houve uma recessão quase tão grande quanto a de 1930. Jovens adultos lutamos pela redemocratização do país. Em 1985, o primeiro governo civil teve que administrar a superinflação causada pelo aumento dos preços de petróleo, a dívida externa e o imenso déficit público deixado pelos governos militares.
Cai o muro de Berlim, o governo Collor congela a poupança, vende casa de ministro e abre a economia. Os automóveis brasileiros são chamados de carroças. A recessão de 1990 é maior. O Plano Real acaba com a inflação. A dívida interna cresce e o desemprego aumenta.
Passamos um terço da vida sob ditadura e outro terço em estagnação.
Na semana passada, sentimos a vida como uma pasta de dente que há sessenta anos vem sendo espremida. Depois de tanto trabalho, discussão e torcida, fomos expelidos para fora do tubo, brancos e assustados, para descobrir que:
1) O número de pobres diminuiu (se um pobre ganhar um real a mais acima de R$ 120 mensais, deixa de ser pobre);
2) a renda dos ricos diminuiu (é rico quem ganha em média R$ 9.000 por mês);
3) em decorrência de 1 e 2, a distribuição de renda melhorou. Antes tivesse piorado;
4) a renda per capita parou de cair depois de dez anos de queda ininterrupta. Um anticlímax;
5) o produto nacional caiu 1,2 % no último trimestre com relação ao trimestre anterior.
O Banco Central não acredita nos dados e pede calma. Calma, pois a esperança de vida dos brasileiros aumentou, e quem chegou aos 60 anos tem a esperança de mais vinte anos de vida pela frente.
Podem ser vinte anos de vida numa Terra mais quente e com a Amazônia seca. É possível ainda que vejamos um presidente eleito com apoio dos traficantes. Com certeza, viveremos num país pobre, perigoso, sujo, com estradas esburacadas e inflação muito baixa. A natureza é sábia e nos protegerá: estaremos surdos e não conseguiremos mais ler os jornais.


João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.

jsayad@attglobal.net


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