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Síndrome de Rubião
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Apesar de o ano ter começado entre
dilúvios e tragédias, nota-se entre o tucanato um clima de discreta euforia
em relação a FHC. O governo entra
em seu sexto ano com a inflação sob
controle, discutindo taxas de crescimento, renovando expectativas. Parece desanuviado e capaz de retomar as
rédeas do país depois de ter ido à lona.
O pior passou, aparentemente -essa a mensagem vinda das hostes governistas. Muito simbólico o banho de
mar do presidente com o diretor de
"Central do Brasil" à véspera do réveillon. As elites estão reconciliadas.
É bom lembrar, porém, que já completamos cinco anos de um reinado
programado para oito, isso desconsiderando a hipótese, hoje remota mas
real, de algum golpe parlamentarista.
E o saldo do conjunto da obra fernandista é muito ruim. A estrutura social
do país permanece intocada, pior,
aponta para um pequeno aumento da
concentração de renda. FHC, que
nunca esqueceu o que escreveu, sabe
que a modernização brasileira sempre
embutiu um Antigo Regime funcional, repondo o atraso em novas bases
sem jamais extirpá-lo. A "revolução"
econômica que ele lidera acrescenta
um novo capítulo a essa ladainha.
Até o colapso do longo ciclo desenvolvimentista, tinha-se a expectativa,
ou a ilusão, de que a integração social
estava no horizonte brasileiro. Era para dar um basta à herança colonial
nunca superada que deveriam convergir os esforços pelo progresso. Hoje essa fantasia se desfez, e o destino da
maioria deixou de fazer parte das
prioridades da nossa nova tentativa de
"aggiornamento" capitalista.
A impotência do país diante de seu
destino frustrado tem como contrapartida a propagação de um cinismo
sem precedentes por parte da intelectualidade tucana. A "utopia do possível" se tornou um eufemismo para o
embotamento mental que assistimos.
A situação faz lembrar o personagem Rubião, no início de "Quincas
Borba", de Machado de Assis, que cito: "Rubião fitava a enseada -eram
oito horas da manhã. Quem o visse,
com os polegares metidos no cordão
do chambre, à janela de uma grande
casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta;
mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado
com o presente. Que era, há um ano?
Professor. Que é agora? Capitalista.
Olha para si, para as chinelas (umas
chinelas de Túnis, que lhe deu recente
amigo, Cristiano Palha), para a casa,
para o jardim, para a enseada, para os
morros e para o céu; e tudo, desde as
chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade".
Nem todos os intelectuais tucanos
que estão ou estiveram no governo ou
em sua órbita nos últimos anos são
Rubiões, é verdade. Pagam todos ainda assim o preço pelo fato de seu colega progressista ter assumido a Presidência para, lá chegando, apenas negociar os termos da nossa inserção seletiva na Grande Restauração global.
Ainda há três anos para brincar de
ajuste conservador. Quando a festa
acabar, o Brasil estará reduzido a um
conjunto de ilhas plugadas à dinâmica
internacional, rodeadas por imensos
bolsões onde hoje já queimam como
carvão os preteridos pelo progresso.
Caberá a outras gerações fazer a biópsia dos despojos sociais produzidos
pelos Rubiões e seus aliados.
Fernando de Barros e Silva é repórter e crítico de
TV da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às
quintas-feiras nesta coluna.
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