São Paulo, Quinta-feira, 06 de Janeiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Síndrome de Rubião

FERNANDO DE BARROS E SILVA

Apesar de o ano ter começado entre dilúvios e tragédias, nota-se entre o tucanato um clima de discreta euforia em relação a FHC. O governo entra em seu sexto ano com a inflação sob controle, discutindo taxas de crescimento, renovando expectativas. Parece desanuviado e capaz de retomar as rédeas do país depois de ter ido à lona.
O pior passou, aparentemente -essa a mensagem vinda das hostes governistas. Muito simbólico o banho de mar do presidente com o diretor de "Central do Brasil" à véspera do réveillon. As elites estão reconciliadas.
É bom lembrar, porém, que já completamos cinco anos de um reinado programado para oito, isso desconsiderando a hipótese, hoje remota mas real, de algum golpe parlamentarista. E o saldo do conjunto da obra fernandista é muito ruim. A estrutura social do país permanece intocada, pior, aponta para um pequeno aumento da concentração de renda. FHC, que nunca esqueceu o que escreveu, sabe que a modernização brasileira sempre embutiu um Antigo Regime funcional, repondo o atraso em novas bases sem jamais extirpá-lo. A "revolução" econômica que ele lidera acrescenta um novo capítulo a essa ladainha.
Até o colapso do longo ciclo desenvolvimentista, tinha-se a expectativa, ou a ilusão, de que a integração social estava no horizonte brasileiro. Era para dar um basta à herança colonial nunca superada que deveriam convergir os esforços pelo progresso. Hoje essa fantasia se desfez, e o destino da maioria deixou de fazer parte das prioridades da nossa nova tentativa de "aggiornamento" capitalista.
A impotência do país diante de seu destino frustrado tem como contrapartida a propagação de um cinismo sem precedentes por parte da intelectualidade tucana. A "utopia do possível" se tornou um eufemismo para o embotamento mental que assistimos.
A situação faz lembrar o personagem Rubião, no início de "Quincas Borba", de Machado de Assis, que cito: "Rubião fitava a enseada -eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade".
Nem todos os intelectuais tucanos que estão ou estiveram no governo ou em sua órbita nos últimos anos são Rubiões, é verdade. Pagam todos ainda assim o preço pelo fato de seu colega progressista ter assumido a Presidência para, lá chegando, apenas negociar os termos da nossa inserção seletiva na Grande Restauração global.
Ainda há três anos para brincar de ajuste conservador. Quando a festa acabar, o Brasil estará reduzido a um conjunto de ilhas plugadas à dinâmica internacional, rodeadas por imensos bolsões onde hoje já queimam como carvão os preteridos pelo progresso. Caberá a outras gerações fazer a biópsia dos despojos sociais produzidos pelos Rubiões e seus aliados.


Fernando de Barros e Silva é repórter e crítico de TV da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: A gordura americana
Próximo Texto: Frases

Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.