São Paulo, terça-feira, 06 de janeiro de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Pensamento brasileiro

Todos têm o direito de formular desejo de ano novo. Meu desejo -distante dos temas a que costumo dedicar esse espaço- é que a inteligência brasileira responda com coragem e inspiração ao momento frustrante que ela vive. E que, repudiando as tendências intelectuais exauridas que predominam nos Estados Unidos e na Europa, se prepare para dar contribuição própria ao pensamento universal. Só assim terá como contribuir também à demarcação do caminho do Brasil. Tentativas políticas de dar rumo original à nação continuarão frágeis enquanto o país não contar com tradições intelectuais mais independentes e fortes. Permaneceremos à mercê das modas importadas e da desesperança alheia.
Não significa nos refugiar em idiossincrasias nativistas que nos isolem das idéias em curso no mundo. Mas também não se reconcilia com o que nos tem pautado: a mera aplicação ao Brasil daquilo que se pensa alhures. Para ter o que dizer ao Brasil sobre o Brasil é preciso ter o que dizer ao mundo sobre o mundo. E, a partir dessa visão universalizante, repensar o país. Propor tal obra quando a universidade brasileira está destroçada pode parecer extremo de ingenuidade. No reino do espírito, entretanto, as tarefas, abraçadas com fervor, geram as energias para forjar os instrumentos de sua execução.
Nas ciências sociais, inclusive as que maior influência exercem -direito e economia-, prevalece no Brasil de hoje a justaposição de duas tradições fatalistas. De um lado, um empirismo míope e conservador, trazido da academia americana, menospreza e trivializa a reconstrução dos pressupostos institucionais e ideológicos de uma sociedade. De outro lado, o resíduo fossilizado das teorias deterministas de outra época, como o marxismo, distorce a natureza dessas estruturas ao apresentá-las como produtos de forças irresistíveis. Ciência social entre nós virou mistura desse duas maneiras de explicar a necessidade do que existe. A imaginação, porém, é antidestino.
Para o Brasil, que só pode tornar-se o que quer ser inovando tanto nas instituições quanto nas idéias, o mais urgente é descobrir como desenvolver maneira de entender as sociedades que desmistifique as estruturas existentes, balizando o trabalho de reimaginá-las e de reconstruí-las. É mais fácil essa reorientação do pensamento social surgir na periferia do Ocidente do que em seus centros entediados.
Nas humanidades, não temos por que nos contentar com uma consciência que se resigna ao distanciamento entre o espaço público e o privado, abandonando aquele aos pequenos ajustes de interesses e entregando este às aventuras de uma subjetividade incapaz de reordenar o mundo no qual, no final de contas, todos temos de viver. Criticar velhas formas de consciência e de prática e inventar novas, reconhecendo que numa democracia a profecia há de falar mais alto do que a memória -essa é a vocação das humanidades num país cuja alta cultura está drenada de vida e cuja cultura popular, cheia de vida, está carente de visão.
Teremos nós a grandeza -mais moral do que intelectual- para buscar dentro de nós mesmos as forças e as inspirações necessárias ao cumprimento dessa tarefa vivificante? Daremos a volta por cima dos desencantos que nos cercam? Que o façamos, sim, contra a lógica das coisas feitas e mortas -esse é meu voto de ano novo.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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