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São Paulo, quinta-feira, 06 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A necessidade de reformar o Código Penal

FLAVIA PIOVESAN E SILVIA PIMENTEL

O atual Código Penal contempla anacronismos, estereótipos, preconceitos e discriminação em relação às mulheres Vivemos um momento paradoxal. No cenário externo, é com perplexidade que acompanhamos a crônica de uma guerra anunciada por meio de preparativos engenhosos, visando mais um morticínio coletivo, assumido em nome da paz. É posta em prática a nova doutrina de segurança adotada nos EUA, pautada no unilateralismo, nos ataques preventivos e na hegemonia militar americana. Some-se a essa doutrina o perverso impacto do pós-11 de setembro na formação de uma agenda global restritiva de direitos e liberdades. Se esse tem sido o legado da esfera macro, no contexto nacional emergem, ao revés, as expressões "esperança" e "mudança" como as mais significativas do estado da alma brasileira. Igualdade e justiça social são os lemas a conduzir a plataforma de mudança nacional.
No entanto, igualdade e justiça social requerem atenção a vários recortes -desigualdade econômica, gênero, raça/etnia e outros-, dos quais ressaltamos gênero. Importa que os vários eixos da mudança sejam considerados equanimemente. Nessa vertente transformadora, destaca-se a recente entrada em vigor do novo Código Civil.
Embora sua adoção tenha ocorrido com atraso, contendo ainda alguns anacronismos, o novo código dever ser saudado, pois em muito avança, aproximando a legislação civil brasileira da realidade do país, de seus valores e da Constituição de 1988. O novo Código Civil substitui um código de 1916, que reproduzia valores ainda mais vetustos.
A Constituição de 1988, ao estabelecer a igualdade de direitos e deveres de homens e mulheres, foi insuficiente para impedir iniquidades inconstitucionais interpretativas em relação aos direitos das mulheres, já que muitos operadores do direito, amparados nos dois grandes pilares jurídicos -o Código Civil e o Código Penal-, privilegiavam a legislação infraconstitucional em detrimento da supremacia constitucional.
Este momento, marcado pelas expectativas de mudança e pelas inovações introduzidas pelo novo Código Civil, é propício para que se reivindique a imediata reformulação do Código Penal de 1940, com sua parte geral modificada em 1984. A peça contempla anacronismos, estereótipos, preconceitos, discriminação, logo, inconstitucionalidades em relação às mulheres. Exemplos são os dispositivos que aludem à mulher honesta como sujeito passivo dos crimes de "posse sexual mediante fraude" e "atentado ao pudor mediante fraude", crimes previstos no título referente aos "crimes contra os costumes", não contra a pessoa.
Adicione-se ainda o dispositivo que prevê a extinção de punibilidade do agente em virtude do casamento da vítima com terceiro, nas hipóteses de crimes contra os costumes (artigo 107, VIII do Código Penal). É inadmissível a manutenção de tais dispositivos, que não se coadunam com os valores sociais contemporâneos e violam os princípios constitucionais da igualdade entre os gêneros e da dignidade humana.
A reforma da legislação penal deve ainda enfrentar a temática do aborto, autorizado, no caso brasileiro, nas hipóteses de estupro ou risco de morte da gestante. Note-se que, na vertente reducionista de direitos, a era Bush prepara uma série de medidas jurídicas restritivas à interrupção da gravidez, mesmo em casos estapafúrdios, como o do "aborto parcial" (esvaziamento craniano intra-uterino), utilizado para interromper a gravidez avançada, quando esta representa risco para a vida da mãe.
Espera-se que o Brasil cumpra a recomendação internacional das conferências do Cairo (1994) e de Pequim (1995), no sentido de revisar as legislações punitivas em relação ao aborto, a ser reconhecido como um problema de saúde pública, não de polícia.
Em entrevistas, o ministro da Justiça, na voz de um grande criminalista, tem se manifestado favoravelmente à reforma da legislação penal, enfatizando a necessária alteração das leis de combate ao crime organizado, da lavagem de dinheiro e contra os crimes hediondos. Tem demonstrado coragem e lucidez ao expressar discordância em relação à redução da maioridade penal para 16 anos e empenho por uma política eficaz de combate à prostituição infanto-juvenil.
Que nesta agenda, com a mesma ênfase, estejam também contempladas medidas de reforma do Código Penal para eliminar todo e qualquer preceito que desrespeite a integridade moral, física e sexual da mulher brasileira. Bastam as dicotomias, tais como a de mulher honesta/desonesta. Bastam as tantas mortes evitáveis de mulheres por ausência de normas e de serviços públicos de saúde que lhes garantam o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos, já que o aborto, realizado em condições inseguras, é a quarta causa de mortalidade materna no país.
Como afirma manifesto de mulheres latino-americanas, lançado em novembro de 2002, há que se "institucionalizar um discurso de direitos que valorize a recuperação e reapropriação de nossos corpos e nossas vidas, reconhecendo a nossa condição de sujeitos plenos, a partir de uma visão que amplie nossas liberdades e outorgue novos significados ao princípio de igualdade e não-discriminação". Que a necessária reforma do Código Penal possa incorporar os direitos à igualdade e à dignidade de que são titulares as mulheres brasileiras, sujeitos plenos de direitos.


Flavia Piovesan, 34, é professora-doutora de direito constitucional da PUC-SP e procuradora do Estado.
Silvia Pimentel, 62, é professora-doutora de filosofia do direito da PUC-SP e diretora do Instituto para Promoção da Equidade. Ambas integram o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher.


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