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TENDÊNCIAS/DEBATES
A necessidade de reformar o Código Penal
FLAVIA PIOVESAN E SILVIA PIMENTEL
O atual Código Penal contempla anacronismos, estereótipos, preconceitos e discriminação em relação às mulheres
Vivemos um momento paradoxal.
No cenário externo, é com perplexidade que acompanhamos a crônica
de uma guerra anunciada por meio de
preparativos engenhosos, visando mais
um morticínio coletivo, assumido em
nome da paz. É posta em prática a nova
doutrina de segurança adotada nos
EUA, pautada no unilateralismo, nos
ataques preventivos e na hegemonia
militar americana. Some-se a essa doutrina o perverso impacto do pós-11 de
setembro na formação de uma agenda
global restritiva de direitos e liberdades.
Se esse tem sido o legado da esfera
macro, no contexto nacional emergem,
ao revés, as expressões "esperança" e
"mudança" como as mais significativas
do estado da alma brasileira. Igualdade
e justiça social são os lemas a conduzir a
plataforma de mudança nacional.
No entanto, igualdade e justiça social
requerem atenção a vários recortes
-desigualdade econômica, gênero, raça/etnia e outros-, dos quais ressaltamos gênero. Importa que os vários eixos da mudança sejam considerados
equanimemente. Nessa vertente transformadora, destaca-se a recente entrada
em vigor do novo Código Civil.
Embora sua adoção tenha ocorrido
com atraso, contendo ainda alguns anacronismos, o novo código dever ser saudado, pois em muito avança, aproximando a legislação civil brasileira da
realidade do país, de seus valores e da
Constituição de 1988. O novo Código
Civil substitui um código de 1916, que
reproduzia valores ainda mais vetustos.
A Constituição de 1988, ao estabelecer
a igualdade de direitos e deveres de homens e mulheres, foi insuficiente para
impedir iniquidades inconstitucionais
interpretativas em relação aos direitos
das mulheres, já que muitos operadores
do direito, amparados nos dois grandes
pilares jurídicos -o Código Civil e o
Código Penal-, privilegiavam a legislação infraconstitucional em detrimento
da supremacia constitucional.
Este momento, marcado pelas expectativas de mudança e pelas inovações
introduzidas pelo novo Código Civil, é
propício para que se reivindique a imediata reformulação do Código Penal de
1940, com sua parte geral modificada
em 1984. A peça contempla anacronismos, estereótipos, preconceitos, discriminação, logo, inconstitucionalidades
em relação às mulheres. Exemplos são
os dispositivos que aludem à mulher
honesta como sujeito passivo dos crimes de "posse sexual mediante fraude"
e "atentado ao pudor mediante fraude",
crimes previstos no título referente aos
"crimes contra os costumes", não contra a pessoa.
Adicione-se ainda o dispositivo que
prevê a extinção de punibilidade do
agente em virtude do casamento da vítima com terceiro, nas hipóteses de crimes contra os costumes (artigo 107, VIII
do Código Penal). É inadmissível a manutenção de tais dispositivos, que não
se coadunam com os valores sociais
contemporâneos e violam os princípios
constitucionais da igualdade entre os
gêneros e da dignidade humana.
A reforma da legislação penal deve
ainda enfrentar a temática do aborto,
autorizado, no caso brasileiro, nas hipóteses de estupro ou risco de morte da
gestante. Note-se que, na vertente reducionista de direitos, a era Bush prepara
uma série de medidas jurídicas restritivas à interrupção da gravidez, mesmo
em casos estapafúrdios, como o do
"aborto parcial" (esvaziamento craniano intra-uterino), utilizado para interromper a gravidez avançada, quando
esta representa risco para a vida da mãe.
Espera-se que o Brasil cumpra a recomendação internacional das conferências do Cairo (1994) e de Pequim (1995),
no sentido de revisar as legislações punitivas em relação ao aborto, a ser reconhecido como um problema de saúde
pública, não de polícia.
Em entrevistas, o ministro da Justiça,
na voz de um grande criminalista, tem
se manifestado favoravelmente à reforma da legislação penal, enfatizando a
necessária alteração das leis de combate
ao crime organizado, da lavagem de dinheiro e contra os crimes hediondos.
Tem demonstrado coragem e lucidez ao
expressar discordância em relação à redução da maioridade penal para 16 anos
e empenho por uma política eficaz de
combate à prostituição infanto-juvenil.
Que nesta agenda, com a mesma ênfase, estejam também contempladas medidas de reforma do Código Penal para
eliminar todo e qualquer preceito que
desrespeite a integridade moral, física e
sexual da mulher brasileira. Bastam as
dicotomias, tais como a de mulher honesta/desonesta. Bastam as tantas mortes evitáveis de mulheres por ausência
de normas e de serviços públicos de
saúde que lhes garantam o exercício de
seus direitos sexuais e reprodutivos, já
que o aborto, realizado em condições
inseguras, é a quarta causa de mortalidade materna no país.
Como afirma manifesto de mulheres
latino-americanas, lançado em novembro de 2002, há que se "institucionalizar
um discurso de direitos que valorize a
recuperação e reapropriação de nossos
corpos e nossas vidas, reconhecendo a
nossa condição de sujeitos plenos, a
partir de uma visão que amplie nossas
liberdades e outorgue novos significados ao princípio de igualdade e não-discriminação". Que a necessária reforma
do Código Penal possa incorporar os direitos à igualdade e à dignidade de que
são titulares as mulheres brasileiras, sujeitos plenos de direitos.
Flavia Piovesan, 34, é professora-doutora de
direito constitucional da PUC-SP e procuradora
do Estado.
Silvia Pimentel, 62, é professora-doutora de filosofia do direito da PUC-SP e diretora do Instituto para Promoção da Equidade.
Ambas integram o Comitê Latino-Americano e
do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher.
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