São Paulo, sexta-feira, 06 de fevereiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ SARNEY

O jogo das inverdades

Estamos todos na simulação de que somos patetas e não somos. Bush diz que fez a Guerra do Iraque porque a CIA lhe informou que o Iraque tinha um arsenal de máquinas mortíferas de guerra biológica, química e nuclear capaz de destruir o mundo. E tinha feito tudo isso às escondidas, sob embargo das Nações Unidas, privado de vender o seu petróleo. Vem o secretário Paul O'Neill, do Tesouro americano, que participava desde o início do governo Bush das reuniões mais fechadas, e diz que o presidente americano, logo nos primeiros encontros, disse que iria invadir o Iraque, o "império do mal", onde existia um demônio chamado Saddam, que "quis matar papai" (palavras literais). Não falou em armas de destruição em massa nem nada. Era a simples vendeta texana.
Agora, Bush, acuado pelas críticas e pela eleição, diz que foi enganado pela CIA. E manda abrir investigação para saber como a CIA soube das armas que não existiam. O senhor Kay, inspetor-chefe na busca de armas, o buscador-mor, proclama no Senado americano que as tais armas nunca existiram.
Na linha das nossas patetices, vem o Blair, o garoto da Inglaterra, o anti-Churchill, e tem a desfaçatez de dizer que foi à guerra porque existiam essas armas e que o serviço secreto britânico lhe tinha comunicado isso. Blair não foi por causa dos Estados Unidos nem para ser solidário a Bush, foi por dever de salvar a humanidade! Há alguém que possa acreditar nisso? Mas a coisa não fica só aí. O homem que confessou à BBC que tudo era uma farsa teve de suicidar-se, o repórter que publicou foi demitido, e a BBC, acusada de dizer uma inverdade. Isto é, as armas que não existiam não existiam mesmo, mas, para Blair convencer o Parlamento, elas existiram e, se não existiram, os que não acreditaram que elas não existiam devem ser punidos, embora elas realmente não existam. É tudo um jogo de muitas inverdades e de esgrima de mentiras.
Por que não dizer que fizeram a guerra para tirar Saddam, realmente um ditador execrável? E, se todos podíamos não concordar com o método, pelo menos sabíamos que os Estados Unidos e a Inglaterra são governados por homens sérios, e não por espertalhões a serviço de paixões pessoais.
Mas a melhor pérola vem de Rumsfeld: "As armas de destruição não foram encontradas, mas isso não prova que elas não existam". Isto é, estão em estado gasoso.
Ganhar uma guerra é muito mais fácil do que ganhar a paz. O mundo está desorganizado. Bush conseguiu esse feito. As prévias americanas estão expondo as feridas que sangram desse processo iraquiano, inclusive seus interesses ocultos de petróleo, de reconstrução, de venda de serviços e de outras coisas que não cheiram bem.
O mais triste de tudo isso é nossa vulnerabilidade a uma ordem mundial em que um só país concentra tanta força e poderio. E essa força e poderio estão concentrados em um só homem, marcado pelas cicatrizes de um passado familiar de insucesso marcial. Saddam está preso. Mas, por essas ironias da história, Bush também está preso nas manobras que construiu para fazer a guerra e nas inverdades que teve de dizer. Sua Mônica Lewinsky está cada vez mais próxima do beco sem saída de Bagdá.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Marcelo Beraba: O PT e o PRI
Próximo Texto: Frases
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.