São Paulo, sexta, 6 de fevereiro de 1998

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Dignidade humana e prevenção


É nas grandes tragédias que o homem percebe a pequenez do ser individual e valoriza sua dimensão social
CARLOS ALBERTO DE CAMARGO

A última reunião da Associação Internacional dos Chefes de Polícia, em outubro do ano passado, na cidade norte-americana de Orlando, reafirmou a tendência mundial de crescimento da polícia comunitária como estratégia de prevenção das infrações contra a ordem pública.
No caso do Brasil, colocando uma perspectiva para o futuro, cremos que a implantação do modelo comunitário de prevenção será importante etapa para alcançar o que chamamos de "polícia de proteção da dignidade humana".
O conceito não se resume apenas a estratégias, táticas ou técnicas de polícia. Deve alcançar uma redefinição da postura e da forma de entender o serviço policial, na qual o agente público encarregado de fazer o policiamento não se limite ao cumprimento das suas destinações legais, mas exerça-as com vocação para promover a dignidade humana, indo além do singular respeito aos direitos das pessoas e alcançando o patamar da atuação deontológica, na completa acepção do termo.
Essa visão é futurista. Não é imediatista nem utópica. Sua concretização passa pela mudança comportamental da polícia e da população, num amplo processo de reeducação. Nele, o policial deve compreender que as soluções na segurança pública não devem ser impostas de forma unilateral, e sim buscadas participativamente junto à sociedade.
Costuma-se dizer que o cimento da solidariedade é o sofrimento coletivo. É nas grandes tragédias que o homem percebe, claramente, a pequenez do ser individual e valoriza sua dimensão social. Os povos que sentiram em suas casas as agruras da guerra ou a ação dos terremotos, dos vulcões, dos furacões desenvolveram um espírito comunitário mais aguçado -até porque o caráter didático dessas situações é rápido e implacável. Ou ele se alia ao seu próximo ou sucumbem juntos.
No Brasil, afortunado por não ter sofrido essas tragédias, o despertar do espírito comunitário tem de acontecer pelo caminho da educação, persuadindo as pessoas, fazendo com que elas compreendam e efetivamente se engajem numa postura de cordialidade e solidariedade, para que objetivos comuns sejam fruto de trabalho conjunto.
O culto ao individualismo faz com que tendamos a ver em cada semelhante alguém a ser vencido. Para derrotá-lo, é válido romper com as regras, tornando-se banal cometer infrações.
A dinâmica desse processo é forte. Rapidamente, ele se estende como exemplo às novas gerações, as quais, cada vez mais, passam a não acreditar nas leis e a buscar na violência a pseudo-solução de seus problemas.
Nós não afirmaríamos que estamos vendo, em realidade, a previsão de Thomas Hobbes de que "a condição do homem (...) é a da guerra de todos contra todos". Mas, seguramente, a equação que está armada hoje nas metrópoles brasileiras é a seguinte: as pessoas desconfiam umas das outras, todos desconfiam da polícia e a polícia desconfia de todos. Esse é o círculo vicioso a romper, o desafio a ser enfrentado em matéria de segurança pública.
Temos, população e polícia, que substituí-lo pelo circulo virtuoso, cujos fundamentos estão na relação de confiança e respeito mútuo e na colaboração solidária e cordial. É preciso recuperar o antigo paradigma pelo qual o "mocinho" sempre vence, entendendo-se por "mocinhos" as pessoas de bem, o policial, a lei.

Carlos Alberto de Camargo, 47, coronel, é comandante-geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo.



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