São Paulo, sexta, 6 de fevereiro de 1998

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Biodiversidade e produção de remédios


O crescimento do mercado brasileiro de medicamentos tem atraído as indústrias multinacionais ao país
JOÃO B. CALIXTO

Em artigo na Folha (pág. 1-3, 19/11/97), o professor Isaias Raw comenta o aproveitamento da biodiversidade para a produção de medicamentos. Fala do interesse atual da indústria farmacêutica na exploração da nossa biodiversidade, comenta os enormes investimentos e os desafios científicos necessários ao desenvolvimento de um novo remédio, trata dos possíveis efeitos tóxicos de medicamentos derivados de plantas e conclui, com ressalvas, que não se deve acreditar em soluções miraculosas dos extratos de plantas e outras formas alternativas utilizadas na medicina popular.
Certamente por não atuar diretamente na área relacionada ao desenvolvimento de remédios, em especial na dos derivados de plantas, o artigo de Raw contém algumas imprecisões e deixa de considerar fatos recentes e relevantes.
É necessário enfatizar a importância das pesquisas básicas realizadas por brasileiros. Maurício Rocha e Silva, do Instituto Biológico de São Paulo, descobriu o peptídeo bradicinina, com o auxílio do veneno de jararaca. Depois, Sérgio H. Ferreira, em Ribeirão Preto, isolou alguns peptídeos capazes de potencializar as ações da bradicinina.
A partir dessas descobertas, desenvolveu-se um novo grupo de medicamentos anti-hipertensivos, cujo mercado mundial ultrapassa US$ 4 bilhões de dólares (não milhões, como mencionado no artigo do professor Raw).
O mercado mundial de medicamentos atinge mais de US$ 300 bilhões anuais; 40% dele origina-se, direta ou indiretamente, de fontes naturais (30% de origem vegetal e 10% de origem animal e de microorganismos). Estima-se que 25 mil espécies de plantas são usadas na produção de remédios.
Dados da Organização Mundial de Saúde indicam que 85% da população mundial (cerca de 4 bilhões de pessoas) utiliza-se de plantas para o tratamento de suas enfermidades. Das 350 mil espécies vegetais que se avalia estejam catalogadas em todo o mundo, cerca de 60 mil delas ocorrem no Brasil.
O crescimento do mercado brasileiro de medicamentos (cerca de US$ 10 bilhões anuais) tem atraído as indústrias multinacionais para o país. A recente aprovação da lei de patentes no Brasil e a criação do Mercosul (no qual o Brasil é responsável por 65% do mercado farmacêutico), aliadas à imensa biodiversidade, são fatores que contribuíram para aumentar os investimentos.
É crescente o número de trabalhos científicos sobre plantas publicados nos últimos anos por cientistas renomados de diversos países, nas mais importantes revistas internacionais.
Como exemplos, podem ser citadas as pesquisas mostrando as atividades do ácido betulínico para o tratamento do melanoma ("Nature Medicine", 10, 1995) e trabalhos desenvolvidos com o taxol e com as campotequinas isoladas da Campoteca acuminata, ambos medicamentos já liberados pela Food and Drug Administration, dos EUA, para o tratamento dos cânceres de mama e de ovário, entre outros.
Procurando estimular o debate científico sobre o uso crescente das chamadas "terapias alternativas", incluindo aí as plantas medicinais, o Senado americano liberou, em 1992, recursos da ordem de milhões de dólares para que os institutos nacionais de saúde desenvolvessem pesquisas na área, criando o Birô de Medicina Alternativa.
Além disso, há a recém-anunciada criação de uma revista científica bianual ("The Scientific Review of Alternative Medicine"), para estimular a discussão das pesquisas. Seu corpo editorial é formado por cinco cientistas laureados com o Prêmio Nobel.
O uso dos medicamentos fitoterápicos ou fitofármacos está atualmente em franca expansão, com um mercado mundial de cerca de US$ 30 bilhões a US$ 40 bilhões. É verdade que muitos deles foram desenvolvidos apenas com base em conhecimentos tradicionais; não foram, ainda, validados cientificamente para confirmar sua eficácia nem se avaliou sua toxicidade. Carecem de melhor controle de qualidade.
Contudo esse quadro está se transformando rapidamente. Preocupadas com a qualidade de seus produtos, as indústrias procuram analisá-los cientificamente, tanto em animais como em seres humanos. Algumas empresas brasileiras fazem pesquisas pré-clínicas em parceria com várias universidades, centros de pesquisas e hospitais.
O resultado disso é que uma empresa como o Laboratório Catarinense acaba de depositar uma patente no Brasil e em outros países, com pesquisas oriundas dessas parcerias, e começa a exportar seus fitofármacos para a Europa. Outros exemplos de aproveitamento da biodiversidade para a produção de medicamentos são as fábricas da Merck em São Luís (MA) e Parnaíba (PI).
Assim, o aproveitamento racional da biodiversidade para a produção de remédios, além de criar divisas para o país, pode ser uma real e excepcional oportunidade de gerar novos empregos, especialmente no meio rural.
É lógico imaginar que a exploração da biodiversidade trará para o Brasil reais possibilidades de desenvolvimento de remédios e outras substâncias de interesse econômico, com reflexos diretos no desenvolvimento industrial.
Se iremos atingir ou não esses objetivos, vai depender do apoio decisivo por parte do governo e das parcerias que necessitam ser realizadas com o setor privado, para garantir o financiamento dos grupos de pesquisa das universidades, como também da capacidade criativa dos pesquisadores para estabelecer parcerias no país e no exterior.


João B. Calixto, 48, é professor titular de farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Foi presidente da Sociedade Brasileira de Farmacologia e de Terapêutica Experimental (1994-1997) e secretário da Comissão de Assessoramento de Medicamentos da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde.



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