|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Ministro, excelso?
RICARDO SEITENFUS
O professor Celso Lafer, jurista e
intelectual de renome, tropeça em
sua reestréia como ministro das Relações Exteriores. A decisão de proibir os
diplomatas de manifestar opiniões sem
a prévia autorização do secretário-geral
do ministério, a ser concedida em casos
excepcionais, portanto de forma discricionária e subjetiva, surpreende ao menos por três razões.
O jurista, outrora opositor das restrições de liberdade impostas pelos militares, promove um retrocesso no processo de democratização. O acadêmico que
liderou profícuos debates sobre questões sensíveis, como a dos direitos humanos, encabeça um cerceamento inédito do debate brasileiro no campo das
relações internacionais. O intelectual
dos mais lúcidos e preparados da elite
brasileira deixa transparecer a simpatia
à formação de um grande bloco comercial capitaneado pelos EUA, a Alca.
O retrocesso em direção à experiência
do regime militar é evidente. Antes do
ato ministerial de Celso Lafer, os diplomatas eram, na prática, livres para expressar opiniões por meio de artigos na
imprensa ou trabalhos acadêmicos,
desde que com a menção expressa do
caráter pessoal do texto. O Itamaraty ficava, assim, isento de qualquer responsabilidade, ausente uma possível confusão entre a posição do ministério e a
opinião do funcionário. Essa é a praxe
firmada nos últimos 15 anos de redemocratização.
Ora, Lafer retoma a discussão, surgida
no Renascimento italiano, sobre os limites da autonomia do representante
diplomático: uma escola propugnava o
respeito estrito à letra das diretrizes recebidas e outra colocava em evidência a
improvisação, defendendo um grau de
liberdade e de apreciação pessoal.
No entanto as relações internacionais
e as atividades diplomáticas evoluíram
de forma a privar de sentido os dilemas
do século 16. A passagem da diplomacia
fechada para a aberta, do método bilateral para o multilateral, o surgimento de
instâncias internacionais de controle
dos Estados, de uma opinião pública
mundial, a multiplicação de mediadores além do diplomata, a influência da
mídia e, em suma, a interdependência
entre os Estados e a concorrência de novos atores frustram o desejo de impor
uma só concepção da realidade. Logo,
além de um erro de princípio, a circular
em questão é de duvidosa eficácia.
Resta, enfim, questionar os argumentos jurídicos do debate. Claro que essa
medida é aparentemente ilegal, mas o
Executivo pretensamente democrático
legisla mais do que o militar e encara a
Constituição brasileira como um pit
bull: quando ataca, retalha ou exaure.
Quanto ao debate sobre a nossa política externa, é consenso que ele peca pela
timidez, pela superficialidade e pelo número restrito de participantes. No momento em que casos recentes demonstram a imbricação profunda e permanente entre assuntos internos e externos, afastar um grupo de interlocutores
que auxilia o entendimento das questões internacionais empobrece a discussão, contrariando os interesses nacionais. Tal é o hermetismo do Itamaraty,
que muitas vezes só se tem acesso a certas informações por meio dos trabalhos
acadêmicos dos diplomatas.
Os cortesãos do rei vão
construindo justificativas
para a Alca; e o governo
reforça a nefasta idéiado discurso único
|
A descabida iniciativa ministerial deixa entreaberta a possibilidade de manifestação de opiniões sobre outros assuntos, como, por exemplo, roteiros turísticos. Mas o interesse da sociedade
brasileira é ouvir o diplomata sobre o
assunto de sua especialidade: a política
externa e as questões internacionais.
O governo reforça a nefasta idéia do
discurso único. O Itamaraty, que só
prestigiava os debates entre diplomatas
e simpatizantes das posições por ele
adotadas, restringe ainda mais a legitimidade de seus atos. É inaceitável que o
Brasil assuma compromissos internacionais definitivos para o delineamento
da vida neste século sem um grande debate nacional. Estão em jogo questões
não somente comerciais, mas humanas,
sociais e ambientais.
A realidade é outra: um Legislativo ignorante e omisso; um Executivo autoritário e arrogante; nossos diplomatas estão amordaçados e a sociedade fica excluída. Ora, não é a opinião pública que
assina acordos internacionais, mas não
se pode assiná-los contra ela.
Os cortesãos do rei vão construindo
um pensamento único para justificar a
Alca, apresentada como inevitável.
Aguardem os artigos dos intelectuais
fernandistas de plantão, aos quais certos diplomatas não poderão responder.
De Fernando em Fernando, o brilho de
muitos intelectuais brasileiros transforma-se num conformismo opaco.
O inconformismo é a tendência: nada
é inevitável, tudo está em pleno processo de definição no cenário internacional. Transbordando em sua inépcia, o
governo humilha injustamente uma
carreira essencial ao futuro do país.
Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 52, doutor
em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra, é professor convidado da Universidade Paris 3 e professor da Universidade Federal de Santa Maria (RS).
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Rosiska Darcy de Oliveira: As mulheres contra a violência
Índice
|