São Paulo, terça-feira, 06 de março de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Ministro, excelso?

RICARDO SEITENFUS

O professor Celso Lafer, jurista e intelectual de renome, tropeça em sua reestréia como ministro das Relações Exteriores. A decisão de proibir os diplomatas de manifestar opiniões sem a prévia autorização do secretário-geral do ministério, a ser concedida em casos excepcionais, portanto de forma discricionária e subjetiva, surpreende ao menos por três razões.
O jurista, outrora opositor das restrições de liberdade impostas pelos militares, promove um retrocesso no processo de democratização. O acadêmico que liderou profícuos debates sobre questões sensíveis, como a dos direitos humanos, encabeça um cerceamento inédito do debate brasileiro no campo das relações internacionais. O intelectual dos mais lúcidos e preparados da elite brasileira deixa transparecer a simpatia à formação de um grande bloco comercial capitaneado pelos EUA, a Alca.
O retrocesso em direção à experiência do regime militar é evidente. Antes do ato ministerial de Celso Lafer, os diplomatas eram, na prática, livres para expressar opiniões por meio de artigos na imprensa ou trabalhos acadêmicos, desde que com a menção expressa do caráter pessoal do texto. O Itamaraty ficava, assim, isento de qualquer responsabilidade, ausente uma possível confusão entre a posição do ministério e a opinião do funcionário. Essa é a praxe firmada nos últimos 15 anos de redemocratização.
Ora, Lafer retoma a discussão, surgida no Renascimento italiano, sobre os limites da autonomia do representante diplomático: uma escola propugnava o respeito estrito à letra das diretrizes recebidas e outra colocava em evidência a improvisação, defendendo um grau de liberdade e de apreciação pessoal.
No entanto as relações internacionais e as atividades diplomáticas evoluíram de forma a privar de sentido os dilemas do século 16. A passagem da diplomacia fechada para a aberta, do método bilateral para o multilateral, o surgimento de instâncias internacionais de controle dos Estados, de uma opinião pública mundial, a multiplicação de mediadores além do diplomata, a influência da mídia e, em suma, a interdependência entre os Estados e a concorrência de novos atores frustram o desejo de impor uma só concepção da realidade. Logo, além de um erro de princípio, a circular em questão é de duvidosa eficácia.
Resta, enfim, questionar os argumentos jurídicos do debate. Claro que essa medida é aparentemente ilegal, mas o Executivo pretensamente democrático legisla mais do que o militar e encara a Constituição brasileira como um pit bull: quando ataca, retalha ou exaure.
Quanto ao debate sobre a nossa política externa, é consenso que ele peca pela timidez, pela superficialidade e pelo número restrito de participantes. No momento em que casos recentes demonstram a imbricação profunda e permanente entre assuntos internos e externos, afastar um grupo de interlocutores que auxilia o entendimento das questões internacionais empobrece a discussão, contrariando os interesses nacionais. Tal é o hermetismo do Itamaraty, que muitas vezes só se tem acesso a certas informações por meio dos trabalhos acadêmicos dos diplomatas.


Os cortesãos do rei vão construindo justificativas para a Alca; e o governo reforça a nefasta idéiado discurso único
A descabida iniciativa ministerial deixa entreaberta a possibilidade de manifestação de opiniões sobre outros assuntos, como, por exemplo, roteiros turísticos. Mas o interesse da sociedade brasileira é ouvir o diplomata sobre o assunto de sua especialidade: a política externa e as questões internacionais.
O governo reforça a nefasta idéia do discurso único. O Itamaraty, que só prestigiava os debates entre diplomatas e simpatizantes das posições por ele adotadas, restringe ainda mais a legitimidade de seus atos. É inaceitável que o Brasil assuma compromissos internacionais definitivos para o delineamento da vida neste século sem um grande debate nacional. Estão em jogo questões não somente comerciais, mas humanas, sociais e ambientais.
A realidade é outra: um Legislativo ignorante e omisso; um Executivo autoritário e arrogante; nossos diplomatas estão amordaçados e a sociedade fica excluída. Ora, não é a opinião pública que assina acordos internacionais, mas não se pode assiná-los contra ela.
Os cortesãos do rei vão construindo um pensamento único para justificar a Alca, apresentada como inevitável. Aguardem os artigos dos intelectuais fernandistas de plantão, aos quais certos diplomatas não poderão responder. De Fernando em Fernando, o brilho de muitos intelectuais brasileiros transforma-se num conformismo opaco.
O inconformismo é a tendência: nada é inevitável, tudo está em pleno processo de definição no cenário internacional. Transbordando em sua inépcia, o governo humilha injustamente uma carreira essencial ao futuro do país.


Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 52, doutor em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra, é professor convidado da Universidade Paris 3 e professor da Universidade Federal de Santa Maria (RS).




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