São Paulo, terça-feira, 06 de março de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

As mulheres contra a violência

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

Vamos hoje inverter os termos, mudar de assunto. Não falar, por um momento, da onipresente violência contra as mulheres. Agora é hora das mulheres contra a violência.
Cresce, no Brasil inteiro, o desespero com a insegurança. Não é justo que os cidadãos de um país que se pretende democrático tenham medo de ir até a esquina comprar pão para o jantar. Ou, se forem, que olhem para cada passante como um possível assaltante. Não é justo que as mães durmam pensando nas drogas que são oferecidas a torto e a direito a seus filhos adolescentes.
Não é justo que policiais armados e fardados assaltem gente pobre que, na fila do ônibus, tenta voltar para casa depois do trabalho. Não é justo que, por isso, todos os policiais sejam chamados de bandidos e que todos os bandidos se comportem como policiais, fazendo e impondo as suas leis arbitrárias e ilegítimas. Não é justo que os responsáveis pela segurança dos cidadãos nos deixem sem respostas enquanto aumenta o pânico, a sensação de abandono e a paranóia dos encurralados sem socorro.
O que acontece no Brasil é gravíssimo. Talvez mais graves sejam os efeitos secundários desse desespero. A incompetência e a lerdeza em apresentar algum resultado começam a minar a confiança não mais nos homens, mas nas instituições. Não é justo que nos façam duvidar de instituições pelas quais alguns deram a vida e outros, a juventude. A sensação de que não há solução leva às ruas um clima de vale-tudo, de salve-se quem puder. Isso não é a imagem de uma sociedade organizada e desorganiza os espíritos individualmente.
Os cidadãos já fizeram tudo o que podiam. Já não sei quantas vezes, no Rio, saímos às ruas, abraçamos lagoas e praias, abraçamo-nos, para nos dar apoio e coragem e entregamos armas. Ainda há poucos dias, no sambódromo, lenços brancos pediam paz.
Infelizmente a segurança é uma área que, em última análise, depende do Estado. O monopólio da violência é uma das características do Estado, assim como o é o controle da moeda. Não se imagina cada um imprimindo a sua moeda porque falsários decidiram fazer várias, cada uma a seu gosto.
Não é verdade que não há nada a fazer. É que se faz errado. Ou não se faz, por desleixo ou por incapacidade de enfrentar a corrupção. É preciso que os responsáveis pela segurança pública entendam de uma vez por todas que é a eles que cabe encontrar uma solução.
A nós, os cidadãos que não têm a pretensão de ser ministro de Estado, governador ou chefe de polícia, compete exigir soluções críveis, visíveis no dia-a-dia. Não adianta perguntar a cada um que protesta o que acha que deve ser feito. Há algo a ser feito já: dar, na agenda política brasileira, ao problema da segurança, a prioridade que ele tem, os recursos indispensáveis e gente competente para geri-los.
Ninguém imagina os responsáveis pela saúde confessando a sua impotência diante de um problema dificílimo e grave como o controle da epidemia de Aids. Governo e sociedade não cruzaram os braços. Congresso e Judiciário fizeram as suas partes. Os recursos apareceram. Os resultados estão aí e são reconhecidos por todos. Houve determinação de agir e política de governo.
Já há suficientes mortos e feridos, vítimas da violência, que se apresenta epidêmica. Cada um teme ser atingido por ela. E quem ainda não foi vai sendo ferido, indiretamente, na qualidade de sua humanidade. Gente meiga vira fera, compra armas e paga polícias privadas.


Mundo afora, as mulheres vêm tentando encarnar os movimentos pela paz; estamos pedindo satisfações
Vamos nos transformando no contrário do que queríamos ser. Esse é o maior dos prejuízos, maior em valor do que o de qualquer bem que um ladrão pode roubar. O que se rouba dos brasileiros é a qualidade da nossa humanidade.
A Justiça não pune; quando pune, a polícia não prende e, quando prende, trata os presos como feras ou trafica a sua liberdade... Quanto mais durar esse ciclo de violência, corrupção e impunidade, mais longe estaremos da paz.
Temos de romper o estranho e generalizado sentimento de paralisia e impotência diante do problema da violência. É preciso não nos habituarmos ao intolerável. É preciso que tudo isso seja o nosso pesadelo, e não a realidade, o pão nosso de cada dia, que o diabo amassou e que o telejornal nos serve.
Mundo afora, as mulheres vêm tentando encarnar os movimentos pela paz. O primeiro passo é, sempre, a quebra da indiferença, a inconformidade com um estado de coisas iníquo.
Em breve estará entre nós um homem que mereceu o Prêmio Nobel da Paz e que nada mais faz senão testemunhar sobre a essência da nossa humanidade. Para Elie Wiesel, indiferença significa incapacidade de perceber diferenças, "estado anormal no qual perde nitidez a fronteira entre luz e escuridão, alvorada e crepúsculo, crime e castigo, crueldade e compaixão, bem e mal".
No Dia Internacional da Mulher, as mulheres costumam fazer reivindicações. Que o 8 de março deste ano seja a ocasião do protesto das mulheres contra a violência que a todos atinge. Um protesto enfático, sem meias palavras. A indiferença das autoridades é uma forma de violência. Estamos pedindo satisfações. Estamos cobrando o direito de viver em paz dentro do nosso país.
Rosiska Darcy de Oliveira, 56, escritora, é presidente do Centro de Liderança da Mulher. Autora, entre outros, de "A Dama e o Unicórnio" (Rocco).


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