São Paulo, terça-feira, 06 de abril de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Libertar os juízes

Querem enfraquecer o poder mais fraco e vigiar o poder menos corrupto. Em vez de impor novo sistema de controle dos juízes, convém destruir o sistema de controle que já existe.
O controle externo sobre o Judiciário no Brasil funciona da seguinte maneira. O presidente da República escolhe os ministros do Supremo Tribunal Federal entre seus compadres ou entre os amigos de seus amigos. O Senado Federal, abdicando sua responsabilidade constitucional, carimba essas indicações. E a sociedade, bestificada, desinformada e desinteressada, omite-se. O resultado é que, com extraordinárias exceções, a corte dirigente, a que as outras se subordinam (e mais subordinadas ficariam com as "súmulas vinculantes"), compõe-se tradicionalmente de bacharéis politiqueiros, conformados com sua própria pequenez. Nesse deserto de idéias e de virtudes, qualquer doutrinador retrógrado impressiona e intimida seus pares.
Sob esse regime, o presidente degola o terceiro Poder e lhe dá cabeça postiça, mais disposta a agradar do que a resistir e antever. A conseqüência é impedir o surgimento de Judiciário capaz de avanços que despertem entusiasmos e antagonismos na sociedade. Daí o desinteresse generalizado pelas indicações presidenciais, fechando círculo vicioso que torna sempre atual a constatação de ser o Judiciário o Poder que mais faltou à República.
Como tanta coisa ruim no Brasil, esse problema tem origem em cópia incompleta. Copiamos dos Estados Unidos o método das indicações presidenciais. Não copiamos, porém, o crivo exigente e caloroso a que, nos Estados Unidos, o Senado e a opinião pública submetem tais nomeações.
O Brasil precisa de juízes que enfrentem quatro temas na fronteira do direito e no centro das preocupações nacionais. O primeiro é a efetivação judicial dos direitos constitucionais a educação e saúde públicas de qualidade: quando necessário, por intervenção dos juízes em sistemas escolares ou hospitalares e por seqüestro dos recursos orçamentários adequados. O segundo é a regulação judicial da compra de educação e saúde privadas pela classe média. O terceiro é o desfazimento judicial da aliança entre bancos públicos, agências reguladoras politizadas e fundos de pensão, que transfere dinheiro de quem trabalha e produz para quem se relaciona bem. O quarto é o trabalho conjunto de organizações sociais, Ministério Público e Judiciário para incriminar os governantes responsáveis pelo leilão do poder público a interesses privados.
Para ter juízes capazes desses enfrentamentos, precisamos descontrolar o Judiciário. Como não se emendará a Constituição para negar ao presidente o privilégio de vestir seus cupinchas de toga, só há um jeito. Cidadãos, procuradores e juízes de todas as instâncias devem insistir nos quatro pontos do temário, desafiando os outros Poderes e constrangendo o Supremo Tribunal Federal. Até que a nação acorde e debata os rumos do direito e a escolha dos juízes dos tribunais superiores. O melhor lugar para começar é o quarto tema: a responsabilização dos governantes corruptos ou coniventes, antes que eles enquadrem os que os enquadrariam. Ah, como seria diferente essa reforma daquela que nosso governo serviçal e financista está copiando do formulário do Banco Mundial e da imprensa internacional de negócios. Seria o início da reconciliação entre o direito e a democracia no Brasil.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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