|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Libertar os juízes
Querem enfraquecer o poder
mais fraco e vigiar o poder menos corrupto. Em vez de impor novo
sistema de controle dos juízes, convém destruir o sistema de controle
que já existe.
O controle externo sobre o Judiciário no Brasil funciona da seguinte maneira. O presidente da República escolhe os ministros do Supremo Tribunal
Federal entre seus compadres ou entre os amigos de seus amigos. O Senado Federal, abdicando sua responsabilidade constitucional, carimba essas
indicações. E a sociedade, bestificada,
desinformada e desinteressada, omite-se. O resultado é que, com extraordinárias exceções, a corte dirigente, a
que as outras se subordinam (e mais
subordinadas ficariam com as "súmulas vinculantes"), compõe-se tradicionalmente de bacharéis politiqueiros,
conformados com sua própria pequenez. Nesse deserto de idéias e de virtudes, qualquer doutrinador retrógrado
impressiona e intimida seus pares.
Sob esse regime, o presidente degola
o terceiro Poder e lhe dá cabeça postiça, mais disposta a agradar do que a
resistir e antever. A conseqüência é
impedir o surgimento de Judiciário
capaz de avanços que despertem entusiasmos e antagonismos na sociedade.
Daí o desinteresse generalizado pelas
indicações presidenciais, fechando
círculo vicioso que torna sempre atual
a constatação de ser o Judiciário o Poder que mais faltou à República.
Como tanta coisa ruim no Brasil, esse problema tem origem em cópia incompleta. Copiamos dos Estados Unidos o método das indicações presidenciais. Não copiamos, porém, o crivo exigente e caloroso a que, nos Estados Unidos, o Senado e a opinião pública submetem tais nomeações.
O Brasil precisa de juízes que enfrentem quatro temas na fronteira do direito e no centro das preocupações nacionais. O primeiro é a efetivação judicial dos direitos constitucionais a educação e saúde públicas de qualidade:
quando necessário, por intervenção
dos juízes em sistemas escolares ou
hospitalares e por seqüestro dos recursos orçamentários adequados. O
segundo é a regulação judicial da
compra de educação e saúde privadas
pela classe média. O terceiro é o desfazimento judicial da aliança entre bancos públicos, agências reguladoras politizadas e fundos de pensão, que
transfere dinheiro de quem trabalha e
produz para quem se relaciona bem.
O quarto é o trabalho conjunto de organizações sociais, Ministério Público
e Judiciário para incriminar os governantes responsáveis pelo leilão do poder público a interesses privados.
Para ter juízes capazes desses enfrentamentos, precisamos descontrolar o Judiciário. Como não se emendará a Constituição para negar ao presidente o privilégio de vestir seus cupinchas de toga, só há um jeito. Cidadãos,
procuradores e juízes de todas as instâncias devem insistir nos quatro pontos do temário, desafiando os outros
Poderes e constrangendo o Supremo
Tribunal Federal. Até que a nação
acorde e debata os rumos do direito e
a escolha dos juízes dos tribunais superiores. O melhor lugar para começar é o quarto tema: a responsabilização dos governantes corruptos ou coniventes, antes que eles enquadrem os
que os enquadrariam. Ah, como seria
diferente essa reforma daquela que
nosso governo serviçal e financista está copiando do formulário do Banco
Mundial e da imprensa internacional
de negócios. Seria o início da reconciliação entre o direito e a democracia
no Brasil.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Samba do crioulo doido Próximo Texto: Frases
Índice
|