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CARLOS HEITOR CONY
Samba do crioulo doido
RIO DE JANEIRO - Ainda bem que está acabando a onda de testemunhos
e confissões sobre o movimento militar de 64. Um dos problemas da mídia, em geral, é não saber (ou não poder) dosar o tamanho e o grau desses
aniversários redondos de fatos ou
pessoas históricas.
De minha parte, e apesar de ter caído em tentação, atendendo a pedidos
de depoimentos sobre o assunto, já
não suportava o excesso de críticas e
denúncias contra aquele movimento,
a começar pela minha própria contribuição.
Apesar de tudo, até certo ponto, foi
divertido ver a confusão de datas,
pessoas e fatos na ótica de testemunhas que se prestaram a engrossar a
avalanche contrária ao golpe de 64.
Acho que já contei: um repórter me
perguntou como eu reagi quando fui
preso pelo Filinto Müller. O escriba
que vos escreve tinha míseros dois
anos quando o famoso policial do Estado Novo fez das suas. Sim, escapei
das garras do Filinto Müller, do mesmo modo como escapei da matança
dos inocentes promovida por Herodes -talvez pelo fato de nunca ter sido inocente.
Em prova de vestibular, Tiradentes
foi arrolado entre as vítimas do DOI-Codi. E a resistência da mídia, em geral, que só existiu depois do AI-5, em
dezembro de 1968, foi antecipada em
quatro anos. Nenhum jornal publicou versos de Camões e receitas de
bolo em 1964. Pelo contrário: a maioria dos veículos da mídia fartou-se
em elogiar o movimento militar daquele ano. E alguns órgãos chegaram
a colaborar com a repressão, lembrando pessoas e entidades que deveriam ser punidas e expulsas do seio
da sociedade. Para ficarmos num
exemplo maior, a cabeça de JK foi pedida por jornais desde o início do golpe. E colocada na bandeja meses
mais tarde.
Prevaleceu um samba do crioulo
doido, dando a impressão de que
meia dúzia de militares renegados e
boçais conseguiram prender e calar
65 milhões de heróicos resistentes ao
totalitarismo. Não foi bem assim.
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