São Paulo, quinta-feira, 06 de setembro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Sorrir de nossa dor

RIO DE JANEIRO - Recebo e-mail endereçado a Clóvis Rossi e a mim. É um texto pedestre, em quadras não metrificadas, que revelam um desencanto geral com o Brasil. Diz ele que, aos olhos do mundo, somos uma Índia sem Gandhi, uma África do Sul sem Mandela.
Em outro trecho, usa uma imagem que me pareceu feliz: ""Talento meio desperdiçado, como uma Ferrari (F-1) dirigida numa pista de rally".
Será mesmo isso? Tudo é possível, dizia Machado de Assis, que também sofria do mesmo desencanto, só que o texto dele era bem melhor.
Parece que somos uma Ferrari até hoje desperdiçada por falta de bons pilotos e de adequação com a pista. Os melhores que tivemos, como já disse anteriormente, foram incompletos: Getúlio pensava muito, mas fazia pouco; JK não pensava, mas fazia. O presidente atual não pensa nem faz, simplesmente vai levando.
Temos muita gente de talento -diz o leitor-, mas faltam-nos estadistas. Deserto de homens e de idéias, como nos chamou Oswaldo Aranha em tempos idos, o Brasil não chega a ser uma ""choldra", como o Portugal que Eça de Queiroz condenou, mas amou acima de tudo. Mas que diabo, por que não demos certo até agora?
Temos metabolismo próprio para absorver o que vem de bom ou de ruim. O editor Ênio Silveira engraxava os sapatos com um guri de rua, que nada comera naquele dia. Politizado, Ênio perguntou ao guri se ele não tinha medo do comunismo. O garoto abriu os dentes num sorriso leal, deu uma caprichada no brilho da biqueira com sua flanela suja de graxa e respondeu:
""Deixa o comunismo vir que nós avacalhamos com ele!".
Índia sem Gandhi, Ferrari sem piloto, pelo menos temos a invejável capacidade de sorrir de nossa dor -como disse o sambista.


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