|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Biografia de um bigode
RIO DE JANEIRO - Há pragas que
acompanham as desventuras de um
cronista -e ser cronista já é uma espécie de praga em si. As mais constantes são a falta de assunto e a falta
de tempo. Hoje, com algum exagero, surpreendi-me com as duas pragas juntas: sem assunto e sem tempo. E, à falta do que falar mal, resolvi colocar-me em dia com um velho
desafeto meu: o bigode.
Não o bigode de vós outros que
usam bigode, mas o meu próprio bigode. Herdei de dois tios-avôs duas
máximas importantíssimas a respeito do assunto. Um deles dizia:
"homem com vergonha na cara não
usa bigode". O outro dizia com o
mesmo entusiasmo e a mesma indignação: "homem sem bigode na
cara é mulher".
Meu coração nunca balançou entre as duas sentenças. Não iria colocar o meu caráter ou a minha virilidade no bigode. Mas acontece que,
quando saí do seminário, andei escandalizando meio mundo com minha cara de seminarista foragido.
Eu próprio me escandalizava. Só
quem esteve num seminário pode
avaliar o drama de fingir que nunca
foi seminarista. Lembro de dois,
Roberto Campos e Austregésilo de
Athayde. Podia lembrar até mesmo
o próprio Josef Stálin.
Até que um dia olhei-me no espelho e vi que com aquela cara ficaria
o resto da vida com jeito de coroinha. Deixei então crescer o bigode e
a concupiscência, sinceramente
convencido de que jamais seria confundido com um ex-seminarista.
Adquiri essa cara sinistra que hoje ostento, misto de traficante de
cocaína e de vilão de cinema mexicano, ou como queiram, de cantor
de tangos ou, no polo oposto, de
chanceler turco. Não sou nada disso. Não faço tráfico de cocaína, nem
coca-cola tomo. Tampouco gosto de
chanceleres turcos. Agora, sou
amarrado em tangos que, entre outras coisas abomináveis, às vezes
justificam meu bigode.
Texto Anterior: Brasília - Eliane Cantanhêde: Mar adentro Próximo Texto: Emílio Odebrecht: Mãos à obra Índice
|