São Paulo, domingo, 6 de setembro de 1998

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O mundo em português



FHC faz uma profissão de fé quando diz sermos, "inegavelmente, um mundo que o português criou'
GERARDO MELLO MOURÃO

"O Mundo em Português - Um Diálogo" é o título de um livro a ser editado pela Paz e Terra, cujas provas acabo de ler. Trata-se de um diálogo de mais de 360 páginas, surpreendente e excitante, até pela qualificação dos interlocutores: os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Mário Soares. Um se prepara para um segundo mandato; o outro presidiu Portugal duas vezes.
Ambos protagonizaram momentos seminais na vida republicana de seus países. FHC, não só pela aventura inédita da reeleição presidencial, mas sobretudo pelo "stil nuovo" do texto sociopolítico de sua práxis de governo; MS, pela consolidação da democracia após o longo consulado salazarista.
Diz-se que, quando dois viscondes se encontram, só têm conversas de viscondes. Mas a conversa dos presidentes não é de viscondes. Problemas vitais são expostos e questionados, com elegância recíproca, mas com franqueza e revelações explícitas, num tratamento a que não estamos muito habituados.
O livro traz um prólogo de Soares e um epílogo de FHC. O título pode sugerir mais um "intermezzo" lírico-retórico do luso-brasileirismo sentimentalista. Soares é, porém, um homem fiel à difícil identidade de seu país: não é fácil generalizar quando se trata de portugueses. Como queria Oliveira Martins, há três portugais. Lavram no mar os que não sabem disso, simplificando, para o riso dos portugueses ilustrados, a imagem do pequeno grande país.
Aberto para as distâncias, "inventor do mar" e criador do Atlântico, pesaram sempre sobre Portugal certos isolamento e marginalidade ante outros focos da Europa. Mas esse isolamento foi fecundo. Criou, por si só, um tipo de salubre resistência, dizia Martins.
Dentro dele, configuram-se os três portugais. Há o da auto-rejeição, que aspira a dissolver-se nos espaços desenvolvidos da Europa; há aquele cujo ser histórico se liga e religa a uma duração e um espaço dialéticos, providencialista e transcendentalista; e há o da aventura ultramarina, da ideologia lusotropicalista, fiel a uma axiologia humanista, de certo modo iluminista e racionalista, como diz Antônio Quadros.
Figura desse último Portugal, o dr. Salazar, patrocinador do lusotropicalismo, levou a Lisboa, com honras de príncipe, o mestre Gilberto Freyre, que faria da viagem oficial tese básica do livro em que fundou sua doutrina lusotropical. Antes, o ditador do lado de lá abrira as portas a Gustavo Barroso, que cumpriu, com sua prodigiosa erudição de historiador, a maratona de 85 conferências e editou o livro "A Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa".
Pode parecer um paradoxo, mas Soares, com a vantagem de se voltar empenhadamente à integração no mundo democrático do Ocidente, salvou e passou a limpo a tese lusotropicalista e foi, em Portugal, o suporte maior da atual CPLP, que tem pais jurídicos (os presidentes Sarney e Itamar) e um pai biológico (José Aparecido de Oliveira).
Mas isso é outra história, lembrada só para acentuar a legitimidade cultural e ideológica com que Soares conversa de igual para igual com FHC sobre problemas brasileiros. De certo modo, o admirável estadista português é também um brasilianista "avant la lettre".
Pena que o elenco de suas relações no país, por ele invocado, descarte a pluralidade do pensamento brasileiro. Limita-se à pequena roda de intelectuais das ex-esquerdas e esquerdinhas, alguns de escassa significação cultural ou personagens existentes só na postura e impostura de efêmeros cargos oficiais.
No epílogo, o presidente brasileiro faz uma profissão de fé e esperança quando diz sermos, "inegavelmente, um mundo que o português criou", aberto à globalização dos tempos -deixando claro, porém, que a globalização exclui o imperialismo, pois o poder está ancorado em cada Estado.
Seria leviandade resenhar num curto artigo 360 páginas de conversa. Mas sua leitura é fundamental para todos os que nos preocupamos com o processo brasileiro. No texto, franco e aberto, FHC rebobina a história de suas duas candidaturas, propondo sem arrogância ou cavilações, como nunca antes, um debate limpo sobre seu projeto para o Brasil na era em que tudo se globaliza, inclusive o furacão econômico.



Gerardo Mello Mourão é poeta e escritor. Foi correspondente da Folha em Pequim (China) de 1980 a 82.





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