São Paulo, quarta-feira, 06 de outubro de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Festival retrô
OLAVO DE CARVALHO
À margem do processo, os católicos ainda não conquistados para o teilhardismo ou para o culto dominicano de Che Guevara entoavam suas litanias habituais ao tomismo "diet" de Maritain, só interrompidos pelo retorno de Tarcísio Padilha, que trazia da França sua tese sobre a ontologia de Louis Lavelle, uma lufada de ar logo dispersa na mesmice geral. Os esquisitões e incatalogáveis -Vilém Flusser, Renato Cirell Czerna, Romano Galeffi- prosseguiam sua batalha inglória, amontoados na trincheira do Instituto Brasileiro de Filosofia, aberta por Miguel Reale para dar espaço a estilos de filosofia rejeitados numa universidade que marginalizava seu próprio reitor. O grosso da corrente seguia o molde uspiano. Em 1968, morria, ignorado pela totalidade dos pigmeus, o único autêntico gigante da filosofia brasileira, Mário Ferreira dos Santos. Desde então nada mudou. O partido -ou pelo menos seu nome- desapareceu, mas a orientação que imprimiu aos estudos filosóficos neste país continua firme e inabalável, graças à obediência passiva das gerações subseqüentes, que nem sabem quem compôs a música que tocam. Dentre os trabalhos inscritos para o evento baiano, o marxismo domina amplamente o leque de temas, com 73 apresentações. Kant e Nietzsche vêm em seguida, com 56 e 53, respectivamente, logo acompanhados pelos desconstrucionistas, com 52. No quinto lugar, Heidegger (35) empata com Platão, ou melhor, com Platão lido por Heidegger. O restante distribui-se entre Freud, os clássicos, os analíticos e outros temas usuais. Aristóteles, que amargou 30 anos de exílio e voltou após o meu "Aristóteles em Nova Perspectiva" (publicado em 1996 e jamais citado nesses ambientes castos), é objeto de 26 comunicações. Hegel merece 20 e Merleau-Ponty, o apologista de Stálin, dez. De tudo o que aconteceu na filosofia mundial no último meio século, minutos preciosos são esfarelados com pensadores de importância episódica, como John Rawls, Robert Brandom ou Gianni Vattimo. Os filósofos criadores mais poderosos das últimas seis décadas, Bernard Lonergan, Xavier Zubiri, Leo Strauss, Frithjof Schuon, Seyyed Hossein Nasr, Eric Voegelin, Ken Wilber e Wolfgang Smith, continuam perfeitamente ignorados, com as possíveis e meritórias exceções de uma comunicação sobre o pensamento iraniano, em que Nasr deve aparecer ao menos como referência, de outra sobre integração da consciência, que talvez mencione Wilber, e de uma terceira com um título altamente significativo: "A novidade da filosofia de Xavier Zubiri". Novidade que nos anos 50 já era objeto de longos estudos de Julián Marías. É um festival retrô em toda a linha. Mas, ali dentro, ninguém sabe disso. Garantidos pela autoridade de dona Marilena Chaui, mentora do evento, os participantes acreditam estar na vanguarda dos tempos. As rodas da história mental, no Brasil, continuam girando com uma defasagem regulamentar de 50 anos em relação ao mundo civilizado; mas quem vai se dar conta disso, se a percepção média acompanha o passo da elite acadêmica? O positivismo chegou aqui quando os ossos de Augusto Comte se esfarelavam. O marxismo, quando sua credibilidade sofria violentos abalos com a revelação do genocídio soviético. O estruturalismo-desconstrucionismo continua em voga, dez anos depois de o episódio Sokal ter evidenciado a charlatanice de seus próceres e 20 depois de Malcolm Bradbury os ter exposto ao ridículo na sátira "My Quest for Mensonge", biografia do filósofo inexistente Henri Mensonge, que, fidelíssimo ao espírito da coisa, desconstruíra-se a si mesmo, desaparecendo por completo desde antes do nascimento. Mas o apego dos brasileiros às suas antigas afeições é tanto que chega a inverter a ordem dos tempos, como nos amores espíritas de além-túmulo. De quando em quando ainda aparece algum jovem universitário, de dedo em riste, dizendo que sou um monstro antediluviano, que só chegarei à atualidade da evolução animal quando ler "Les Mots et les Choses" (1966). Assim caminha a brasilidade. Mas isso não abala a consciência de ninguém. De Cruz Costa a Paulo Arantes, a ortodoxia uspiana sempre trouxe consigo a autovacina contra constatações deprimentes, explicando a própria inépcia pelo subdesenvolvimento econômico (afinal, quem filosofa sem uma boa conta bancária?) e este último, é claro, pela "Teoria da Dependência". Logo, ninguém precisa se acusar de nada. É tudo culpa do George W. Bush. Olavo de Carvalho, 57, jornalista e ensaísta, é autor de, entre outros livros, "O Jardim das Aflições" (É Realizações, 2001). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Gleisi Hoffmann: A energia que ninguém vê Índice |
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