|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANTONIO DELFIM NETTO
Doze séculos vos espreitam
A Constituição de 1988 foi obra
difícil. Construída aos pedaços,
não tinha uma linha mestra ou um líder iluminado que a orientasse. Prevalecia entre os deputados e senadores,
saídos do autoritarismo, o mito a que
se refere agora o presidente FHC: "No
Brasil está tudo errado!". Uma maioria defasada no tempo e a favor de
uma participação cada vez maior do
Estado nas atividades econômicas e
incapaz de decidir-se pelo presidencialismo ou pelo parlamentarismo
produziu uma organização política,
jurídica, social e econômica que reflete
essas dificuldades. A Constituição é
clara e de muito boa qualidade, entretanto, no que se refere aos direitos individuais. O seu preâmbulo é particularmente esclarecedor sobre a natureza da sociedade que os brasileiros desejam para si.
Restaram, por outro lado, alguns
dispositivos folclóricos impostos com
furor e barulho, desacompanhados de
raciocínio, por um grupo que, seriamente, se pensava "como esquerda".
A União Soviética ainda não havia desaparecido e a carnagem stalinista
continuava quente. Os currículos respeitáveis ainda não exibiam com o indisfarçável orgulho de hoje a qualificação de "ex-membro do PCB". Daqueles dispositivos, nenhum se iguala ao
espantoso parágrafo 3º, do item VIII
do artigo 192, onde se afirma: "As taxas de juros reais (...) não poderão ser
superiores a 12% ao ano; a cobrança
acima desse limite será conceituada
como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos
que a lei determinar".
Sob uivos, apupos, risos e aplausos,
foi aprovado tal despautério em 1988.
Uma coisa, porém, é certa: o seu autor
nunca soube dizer como se calcularia
a "taxa de juro real". Fez-se isso no
Brasil, 200 anos depois de ter sido revogada (na Revolução Francesa, de
1789) a fixação da taxa de juro (nominal) lançada em 789 por Carlos Magno (742-814), o rei dos francos e imperador do Ocidente, na primeira "capitulaire" de Aix-la-Chapelle! Mil anos
de desobediência (principalmente pela igreja) foram necessários para que
tal dispositivo, ignorado pela realidade econômica em renascimento, fosse, afinal, eliminado.
Mil e duzentos anos foram insuficientes para que uma "certa esquerda" brasileira entendesse, em 1988, de
que se tratava. Por causa disso, o dispositivo do artigo 192 nunca foi utilizado e é violado todo santo dia... A
vergonha foi tanta, que o Supremo decidiu, para que o mundo funcionasse,
que ele só valeria depois de "regulamentado" todo o Artigo 192.
Chegou a hora de eliminá-lo de uma
vez, regulamentando todo o artigo
192, inclusive desconstitucionalizando alguns de seus aspectos. É inacreditável que, depois de 12 séculos, o líder
do PT na Câmara seja levado a declarar que "ainda temos problemas na
bancada" para eliminar a fixação da
taxa de juro real. Felizmente ele tranquilizou o mundo quando disse "mas
essa não é uma posição definitiva..."
Ah, bom!
Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.
E-mail: dep.delfimnetto@camara.gov.br
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: O sonho do beduíno Próximo Texto: Frases
Índice
|