São Paulo, quarta-feira, 06 de novembro de 2002

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ANTONIO DELFIM NETTO

Doze séculos vos espreitam

A Constituição de 1988 foi obra difícil. Construída aos pedaços, não tinha uma linha mestra ou um líder iluminado que a orientasse. Prevalecia entre os deputados e senadores, saídos do autoritarismo, o mito a que se refere agora o presidente FHC: "No Brasil está tudo errado!". Uma maioria defasada no tempo e a favor de uma participação cada vez maior do Estado nas atividades econômicas e incapaz de decidir-se pelo presidencialismo ou pelo parlamentarismo produziu uma organização política, jurídica, social e econômica que reflete essas dificuldades. A Constituição é clara e de muito boa qualidade, entretanto, no que se refere aos direitos individuais. O seu preâmbulo é particularmente esclarecedor sobre a natureza da sociedade que os brasileiros desejam para si.
Restaram, por outro lado, alguns dispositivos folclóricos impostos com furor e barulho, desacompanhados de raciocínio, por um grupo que, seriamente, se pensava "como esquerda". A União Soviética ainda não havia desaparecido e a carnagem stalinista continuava quente. Os currículos respeitáveis ainda não exibiam com o indisfarçável orgulho de hoje a qualificação de "ex-membro do PCB". Daqueles dispositivos, nenhum se iguala ao espantoso parágrafo 3º, do item VIII do artigo 192, onde se afirma: "As taxas de juros reais (...) não poderão ser superiores a 12% ao ano; a cobrança acima desse limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar".
Sob uivos, apupos, risos e aplausos, foi aprovado tal despautério em 1988. Uma coisa, porém, é certa: o seu autor nunca soube dizer como se calcularia a "taxa de juro real". Fez-se isso no Brasil, 200 anos depois de ter sido revogada (na Revolução Francesa, de 1789) a fixação da taxa de juro (nominal) lançada em 789 por Carlos Magno (742-814), o rei dos francos e imperador do Ocidente, na primeira "capitulaire" de Aix-la-Chapelle! Mil anos de desobediência (principalmente pela igreja) foram necessários para que tal dispositivo, ignorado pela realidade econômica em renascimento, fosse, afinal, eliminado.
Mil e duzentos anos foram insuficientes para que uma "certa esquerda" brasileira entendesse, em 1988, de que se tratava. Por causa disso, o dispositivo do artigo 192 nunca foi utilizado e é violado todo santo dia... A vergonha foi tanta, que o Supremo decidiu, para que o mundo funcionasse, que ele só valeria depois de "regulamentado" todo o Artigo 192.
Chegou a hora de eliminá-lo de uma vez, regulamentando todo o artigo 192, inclusive desconstitucionalizando alguns de seus aspectos. É inacreditável que, depois de 12 séculos, o líder do PT na Câmara seja levado a declarar que "ainda temos problemas na bancada" para eliminar a fixação da taxa de juro real. Felizmente ele tranquilizou o mundo quando disse "mas essa não é uma posição definitiva..." Ah, bom!


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

E-mail: dep.delfimnetto@camara.gov.br


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