São Paulo, quarta-feira, 06 de novembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

O sonho do beduíno

RIO DE JANEIRO - Nada mais parecido com um sultão de "As Mil e uma Noites" do que um presidente eleito. Todas as odaliscas se oferecem para colaborar, ou seja, para ajudar o sultão a atravessar as tais mil e uma noites em boa cama e em melhor companhia.
O problema maior, tanto para o sultão como para as odaliscas, é que o sultão é um só e as odaliscas são muitas, muitas e de variados encantos e propósitos.
Para atingir o patamar de sultão, o presidente eleito rebolou durante meses. No caso de Lula, rebola há anos, desde 1989. Não é fácil seduzir um eleitorado tão grande e tão necessitado. Mas teve a ajuda eficiente de milhares de grão-vizires, de califas locais que apostaram nele e se preparam agora para dividir o festim.
É natural a preocupação, os temores e pressentimentos das odaliscas. Afinal, mil e uma noites passam depressa e não haverá tempo para todas serem admitidas ao serralho onde são queimados os incensos do poder, ao som das flautas que, nos contos orientais, são sempre maviosas, e nunca maravilhosas.
Longe do palácio feérico, fosforescente de ouro e mármore, mordendo sem sabor as tâmaras ressecadas do deserto, com água incerta no cantil e um camelo estropiado que nem fica mais em pé, o beduíno invoca Allah, Todo-Poderoso, e pede que ele proteja o sultão, proteja os califas e os grão-vizires, proteja sobretudo as odaliscas que se aprestam a servir o novo Pai dos Crentes.
Que Allah Todo-Misericordioso também não se esqueça dele, beduíno fatigado e descamelado, coberto de pó e sede, mal alimentado pelas tâmaras mais amargas do deserto.
E, se o sultão, enfarado, desprezar alguma odalisca, que Allah Para Sempre Louvado se lembre dele e, na impossibilidade de lhe dar mil e uma noites, ao menos lhe dê uma noite que valha a pena.


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