São Paulo, quinta-feira, 06 de dezembro de 2007

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O terrorismo que mal começa

CANDIDO MENDES

Está em causa nesta nova cultura do medo o quanto a sua manifestação vai além das violências de Estado ou de organizações regionais

AS MAIORES organizações islâmicas reuniram-se em Túnis (Tunísia), a 15 de novembro, com a Comissão de Alto Nível das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações numa interrogação de fundo quanto ao terrorismo de nossos dias, em desmentido radical do que se pensava que fosse o avanço da cultura de paz, suposto pela modernidade.
Encontraram-se especialistas ligados à violência da Irlanda do Norte, entre católicos e protestantes; à explosão continuada basca do ETA; à agressão do Sendero Luminoso, de volta após a sua quase extinção no Peru, na última década.
O que está em causa nesta nova cultura do medo é o quanto a sua manifestação vai além das violências de Estado ou de organizações regionais, voltadas à imposição de novas autonomias políticas, para atingir o fenômeno macabro dos homens-bomba.
O fanatismo teria aí atingido a desestabilização radical e o cancelamento do outro, no que se torna a convivência polarizada e unilateral desse mundo que perdeu a noção das diferenças.
A sucessão de manifestações de iranianos, marroquinos, jordanianos, egípcios, tunisianos e sírios só fez repetir o repúdio intrínseco da cultura islâmica a essa violência. E voltar ao chamamento do Corão de tolerância com o infiel e a visão da coexistência contemporânea.
A conferência mostrou o confronto radical com o sectarismo da Al Qaeda e a abertura e o encaminhamento a um universo do pânico, sem volta, tanto que Bin Laden e seus grupos só abrirão mão dos atentados continuados após a conversão do Ocidente ao islamismo. Estaria em causa a chegada da violência ao inconsciente coletivo, que se veria violentado pelo impacto em que uma modernização acrítica e colonizadora atingiu a subjetividade muçulmana.
O horror da queda das torres de Manhattan pode se trocar, nesse simbolismo compensatório, num selvagem desagravo do inconsciente atormentado, pela colonização interior, a de repente dar-se conta de sua vindicação histórica. Aí estaria, subterrâneo, o culto de Mohamed Atta e os outros terroristas da derrubada do WTC, no inquietante dessas forras, do irracional que manifestam e das dificuldades interiores para o seu ajuste de contas e efetiva superação.
No limite desse fosso, são suficientes a política de segurança-limite, os avanços da guerra ao narcotráfico, o controle da guerra química ou mesmo de seus dispositivos nucleares?
A pedagogia democrática responde ao que seja o protesto numa sociedade fanatizada e de que forma sua descompressão ainda é o melhor caminho para que não chegue ao extremismo, e este, ao novo horror terrorista?
A sociedade autoritária seria o imperativo incontornável para a contenção terrorista ou o jogo pleno das democracias, no risco consentido de suas aberturas, representaria o único caminho para a volta às normalizações sociais e trazidas dos inconscientes coletivos ao "nível do mar", efetivo de um diálogo entre culturas?
Claro e de imediato, o duro itinerário a percorrer é o do desarme dos estereótipos ou das idéias fixas em que a "civilização do medo" já criou os seus bodes expiatórios e cristalizou os seus álibis. E caberá, sem dúvida, ao melhor repertório da modernidade a busca das ações afirmativas daquela compensação dos inconscientes coletivos a partir de ricas e novas ações de resgate simbólico.
Movimentos como o dos "reféns do diálogo", por exemplo, em que universitários ocidentais se exponham à crítica continuada do mundo islâmico, inclusive no auge das ações terroristas, são talvez o começo do caminho dificílimo em que o Ocidente possa desvestir-se, diante do Islã, da arrogância da última palavra e do monopólio da razão.
Nada talvez mais obsoleto hoje do que a "cultura da paz", como pensada há 20 anos. Nada mais arriscado, mas a ter frutos à altura de sua temeridade, do que a ação do Ocidente que vá a um testemunho de credibilidade inédito para vencer a "civilização do medo" que acompanhou, na prática, o breviário do progressismo e da instintiva arrogância ocidental.


CANDIDO MENDES, 79, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do "senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

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