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O terrorismo que mal começa
CANDIDO MENDES
Está em causa nesta nova cultura do medo o quanto a sua manifestação vai além das violências de Estado ou de organizações regionais
AS MAIORES organizações islâmicas reuniram-se em Túnis
(Tunísia), a 15 de novembro,
com a Comissão de Alto Nível das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações numa interrogação de fundo
quanto ao terrorismo de nossos dias,
em desmentido radical do que se pensava que fosse o avanço da cultura de
paz, suposto pela modernidade.
Encontraram-se especialistas ligados à violência da Irlanda do Norte,
entre católicos e protestantes; à explosão continuada basca do ETA; à
agressão do Sendero Luminoso, de
volta após a sua quase extinção no Peru, na última década.
O que está em causa nesta nova cultura do medo é o quanto a sua manifestação vai além das violências de Estado ou de organizações regionais,
voltadas à imposição de novas autonomias políticas, para atingir o fenômeno macabro dos homens-bomba.
O fanatismo teria aí atingido a desestabilização radical e o cancelamento do outro, no que se torna a
convivência polarizada e unilateral
desse mundo que perdeu a noção das
diferenças.
A sucessão de manifestações de iranianos, marroquinos, jordanianos,
egípcios, tunisianos e sírios só fez repetir o repúdio intrínseco da cultura
islâmica a essa violência. E voltar ao
chamamento do Corão de tolerância
com o infiel e a visão da coexistência
contemporânea.
A conferência mostrou o confronto
radical com o sectarismo da Al Qaeda
e a abertura e o encaminhamento a
um universo do pânico, sem volta,
tanto que Bin Laden e seus grupos só
abrirão mão dos atentados continuados após a conversão do Ocidente ao
islamismo. Estaria em causa a chegada da violência ao inconsciente coletivo, que se veria violentado pelo impacto em que uma modernização
acrítica e colonizadora atingiu a subjetividade muçulmana.
O horror da queda das torres de
Manhattan pode se trocar, nesse simbolismo compensatório, num selvagem desagravo do inconsciente atormentado, pela colonização interior, a
de repente dar-se conta de sua vindicação histórica. Aí estaria, subterrâneo, o culto de Mohamed Atta e os outros terroristas da derrubada do
WTC, no inquietante dessas forras,
do irracional que manifestam e das
dificuldades interiores para o seu
ajuste de contas e efetiva superação.
No limite desse fosso, são suficientes a política de segurança-limite, os
avanços da guerra ao narcotráfico, o
controle da guerra química ou mesmo
de seus dispositivos nucleares?
A pedagogia democrática responde
ao que seja o protesto numa sociedade fanatizada e de que forma sua descompressão ainda é o melhor caminho para que não chegue ao extremismo, e este, ao novo horror terrorista?
A sociedade autoritária seria o imperativo incontornável para a contenção terrorista ou o jogo pleno das democracias, no risco consentido de
suas aberturas, representaria o único
caminho para a volta às normalizações sociais e trazidas dos inconscientes coletivos ao "nível do mar", efetivo
de um diálogo entre culturas?
Claro e de imediato, o duro itinerário a percorrer é o do desarme dos estereótipos ou das idéias fixas em que a
"civilização do medo" já criou os seus
bodes expiatórios e cristalizou os seus
álibis. E caberá, sem dúvida, ao melhor repertório da modernidade a
busca das ações afirmativas daquela
compensação dos inconscientes coletivos a partir de ricas e novas ações de
resgate simbólico.
Movimentos como o dos "reféns do
diálogo", por exemplo, em que universitários ocidentais se exponham à
crítica continuada do mundo islâmico, inclusive no auge das ações terroristas, são talvez o começo do caminho dificílimo em que o Ocidente
possa desvestir-se, diante do Islã, da
arrogância da última palavra e do monopólio da razão.
Nada talvez mais obsoleto hoje do
que a "cultura da paz", como pensada
há 20 anos. Nada mais arriscado, mas
a ter frutos à altura de sua temeridade, do que a ação do Ocidente que vá a
um testemunho de credibilidade inédito para vencer a "civilização do medo" que acompanhou, na prática, o
breviário do progressismo e da instintiva arrogância ocidental.
CANDIDO MENDES, 79, membro da Academia Brasileira
de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do
"senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura).
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