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Racismo e capitalismo
ARIANO SUASSUNA
Foi em 1955 que escrevi o "Auto da
Compadecida". Naquela época, com
exceção do admirável "Teatro Experimental do Negro" -criado por Abdias do Nascimento-, os movimentos negros não se tinham, ainda, organizado no Brasil. Brasileiro branco e
privilegiado que sou, os poucos acertos que, naquele tempo, me ocorriam
ao refletir sobre o racismo originavam-se apenas de uma apaixonada
busca da verdade e da justiça -coisa
que, graças a Deus, desde muito moço
nunca me faltou (às vezes acompanhada por uma indignação nem sempre medida e justa).
Foi a partir da década de 80 que,
convivendo com Adelaide Lima, Josafá Mota e outros participantes do Movimento Negro Unificado, passei a ter
uma visão mais clara sobre o problema dos negros, no Brasil e no resto do
mundo. Passei a frequentar o MNU; e,
no curso de uma de suas reuniões, tive
oportunidade de ouvir uma verdadeira aula, pronunciada por Joel Rufino
dos Santos, que explicou por que a sociedade brasileira encara com tanta
naturalidade a tortura (desde, é claro,
que praticada contra os pobres, os negros e os desvalidos de qualquer natureza): é que, durante quatro dos cinco
séculos do Brasil "branco", a tortura
era não só tolerada ou permitida, mas
legal e prescrita por documentos oficiais. Chegava-se a discriminar, cuidadosamente, caso a caso, o número de
chibatadas e castigos piores que deveriam ser aplicados aos escravos, de
acordo com a natureza e a gravidade
dos "crimes" que tivessem cometido.
"Assim formada" -dizia Joel Rufino
dos Santos naquela aula-, "não admira que a sociedade brasileira branca
ache que é natural prender e torturar
os brasileiros pobres e negros por ela
considerados como marginais."
Noutra reunião do MNU, uma moça, Inaldete Pinheiro de Andrade, perguntou-me se, na época em que escrevera o "Auto da Compadecida", eu já
era devidamente esclarecido sobre o
problema negro. Respondi-lhe que
não. E ela retrucou que, mesmo assim,
o aparecimento, no palco, do meu
Cristo negro fora uma das grandes
emoções de sua vida.
Agradecendo suas generosas palavras, contei como chegara a ele. Durante os dias em que escrevia a peça
estava acontecendo, nos Estados Unidos, uma campanha destinada a impor legalmente a presença de crianças
negras nas escolas brancas. Em revide,
os brancos racistas organizavam manifestações contra a integração; e eu vi,
na revista "Life", a fotografia de um
desses comícios: na frente do grupo de
"brancos, anglo-saxões e protestantes", uma mulher (aliás, e não por acaso, horrorosamente feia) exibia um
cartaz no qual se lia: "Ao criar raças diferentes, Deus foi o primeiro segregacionista".
Foi nesse momento que, movido
por uma daquelas indignações a que
me referi a princípio, resolvi apresentar como um negro a figura de "Manuel", isto é, a imagem popular do
Cristo que iria aparecer em minha peça. E concluo pedindo que se reflita
um pouco para ver como são semelhantes, por um lado, a cabeça e o coração da mulher do cartaz e, por outro, a cabeça e o coração daqueles que
afirmam que Deus é capitalista porque foi ele quem criou as desigualdades e injustiças do regime que tem no
lucro e na produção a qualquer custo
seu objetivo fundamental.
Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.
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