São Paulo, terça-feira, 07 de março de 2000


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Outra carta ao presidente


Aquele seu velho sonho, presidente, o senhor realizou. Chegou lá. E o sonho acabou


VALDIR ZWETSCH

Excelentíssimo senhor presidente:
Pensei muito no senhor um domingo desses. Era aniversário de minha mulher, que é socióloga como o senhor e por pouco não foi sua aluna. Os meninos estavam cada um para um lado, e a gente decidiu dar uma volta de carro pelo centro da cidade. Falo de São Paulo, a sua cidade.
Fomos direto ao largo do Arouche, para comer. Não num bistrô francês muito bom que tem por ali, que o senhor conhece bem. Fomos a um árabe, mais popular, mais ligeiro e bem mais barato. No caminho já tomei um susto: o cine Arouche, onde já assisti a alguns clássicos da nouvelle vague, virou cinema pornô. Não sabia, fiquei decepcionado.
Em frente ao restaurante não havia vaga para parar o carro, mas um "guardador" (ou "flanelinha") rapidamente me indicou a faixa junto do canteiro central, toda demarcada por placas de estacionamento proibido. Assim que comecei a argumentar que ali não dava, o rapaz me tranquilizou: "Não esquenta, patrão, hoje os homi já passô multando de manhã. Eles não volta mais. E, se voltá, a gente chama o senhor no restaurante". Me senti no Brasil, bem no centro de São Paulo.
Depois do almoço e da gorjeta ("os homi não voltô"), saímos a andar pelo centro velho de São Paulo, sempre de carro, que nos parecia mais seguro.
E aí comecei a lembrar do senhor.
A avenida São Luís parece um boulevard francês, com aquelas árvores imensas e as calçadas largas. Mas não tinha quase ninguém, só uns pouquíssimos gatos-pingados, andando naquelas calçadas amplas. Em Paris, que o senhor conhece muito bem, num domingo à tarde não tem calçada de boulevard central deserta, não é mesmo?
Fomos em frente, em direção à praça da Sé. E tudo sempre e mais deserto. As calçadas sujas, as sarjetas cheias de lixo e as paredes de quase todos os prédios emporcalhadas por pichações pouco legíveis, umas se sobrepondo às outras, sugerindo uma estúpida competição de quem suja mais a cidade.
Fora quem estava nos carros, os poucos seres humanos que víamos nos provocavam compaixão: mendigos maltrapilhos, sujos, deitados sobre jornais, folhas de papelão. Famílias inteiras. Quanto mais perto da Sé chegávamos, mais eles eram. E eu cada vez mais pensando no senhor, um sociólogo assim tão Sorbonne... Talvez o senhor chamasse aqueles seres ali de lúmpen, ou de excluídos. Para mim, naquele momento, eram brasileiros, apenas. Como eu, como o senhor. Só que jogados na calçada, com o lixo.
A praça da Sé, onde tanta coisa aconteceu, o senhor lembra, só não estava deserta porque havia um grupo de meninos cheirando cola. O metrô garantia algum movimento, e um bando de evangélicos com seus aparelhos de som pregava em altos brados e recolhia doações de meia dúzia de pobres coitados.
Deixamos a Sé e fomos ver o largo São Francisco, as arcadas -tudo tão simbólico, tão nostálgico. Nos tempos da ditadura, por ali tramava-se um país menos subdesenvolvido, mais justo, livre, democrático. Mas naquele domingo a Faculdade de Direito estava fechada e o largo servia também e apenas de desabrigo a alguns desvalidos.
E cada vez mais eu pensava no senhor. Já era uma coisa obsessiva, talvez uma maldição. Então lembrei que naquele mesmo dia o senhor estava em São Paulo. Podia estar naquele momento em seu apartamento em Higienópolis, talvez acordando de uma merecida soneca, e de repente podia ter a idéia de dar uma volta com dona Ruth pelo centro da cidade. Há quanto tempo o senhor não faz isso, presidente? Não dá vontade? Tenho certeza de que nos tempos de Sorbonne o senhor dava longos passeios pelas calçadas nos domingos à tarde e era bom.
Eu pensava nisso e pensava o quanto não é preciso ir longe para conhecer o "Brasil real". Sertão do Piauí, margens do Tocantins, favela da Rocinha, Jardim Ângela, cidade de Águas Lindas -está cheio de Brasil real por aí. Talvez da varanda do Alvorada mesmo dê para ver alguma coisa.
Mas o que me incomodava e me doía era pensar nisso tudo e não conseguir deixar de pensar no senhor. E então já estávamos chegando ao Pátio do Colégio. Aquela calçadona grande estava cheia de gente estendida no chão, como em todos os outros lugares, e estava cheia de lixo. Ali na frente passava um ônibus com turistas. Não sei se eram estrangeiros, não deu para ver. Mas na minha cabeça vieram imagens do centro de Paris, do centro de Madri, do centro de Lisboa -as poucas capitais européias que conheço, veja só. Percebi que esses turistas, como eu, deviam estar comparando. E senti vergonha.
Vergonha de estar ali, só olhando. Vergonha de estar ao volante de um carro grande, de quatro portas. Vergonha de ter um bom emprego e receber salário em dia. Vergonha do senhor, que tem a chance de mudar tudo isso.
Na segunda-feira, abri o jornal e li a carta aberta do professor Rubem Alves (que admiro há anos) ao senhor ("Tendências/Debates", 21/2). E, no mesmo instante, concordei com ele. Eu achando que lhe falta passear um pouco mais pelas calçadas do Brasil real, presidente, e o professor mostrando que o que lhe falta é "criar um povo, com idéias que dão sentido à vida em comum". Um povo que possa sonhar, presidente.
Porque aquele seu velho sonho, presidente, o senhor realizou. Chegou lá. E o sonho acabou.


Valdir Zwetsch, 53, jornalista, é editor-chefe do Jornal da Band, da Rede Bandeirantes de Televisão.



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