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JOSÉ SARNEY
A violência e a orelha de Stálin
É do nosso velho Camões, quanto
mais velho, melhor, o verso das
Redondilhas em que diz que "e minhas coisas ausentes / se fizeram tão
presentes / como se nunca passaram".
Esta é uma semana de coisas passadas
e de outras que não passarão. Foi o
Carnaval que passou e virá de novo
daqui a um ano, com todas as alegrias,
adereços, gozos e todas as coisas que
lhe são bacirrábicas. Virão Mangueira,
Beija-Flor, Salgueiro, Gaviões da Fiel,
Portela, os bonecos de Olinda, os Fofões do Maranhão e o Pato Pelado escondido numa pequena cidade do
Norte do Brasil, onde a alegria do Carnaval é espetar num mastro o pato e
em torno dele dançar e beber.
Chegamos às Cinzas e estas também
já passaram para voltarem no próximo ano. O padre Vieira, sempre bom
de ser citado, dizia que o tempo de
Cinzas tinha duas coisas a pensar:
uma grande, do presente, e outra
maior, do futuro. A primeira é a afirmação de que somos pó: "pulvis es" (é
bom um latinzinho de ginásio). A outra coisa maior era futura: "em pó nos
tornaremos". Diz Vieira que o pó que
somos é alegre, porque é vida, mas o
pó futuro, que haveremos de ser, não
veremos, pois é morte. Cinzas à parte,
esse tempo era antigamente de um jejum brabo. Hoje é aliviado, temos
apenas a obrigação de não comer carne. Neste ano, sobretudo, quando
Bush quer comer a carne dos iraquianos, o papa nos manda jejuar pela
paz. A fome nos remeterá à oração
-e nesta pedir a Deus que não se faça
a vontade do presidente americano.
Semana de coisas passadas, como a
comemoração dos 50 anos da morte
de Stálin, quem mais matou gente na
face da Terra, chegando mesmo a matar a própria família. No fim de sua vida, solitário, tendo o comunismo como um dogma religioso, implantou a
sua Inquisição e, com medo de todos
e de tudo que poderia parecer negar a
sua fé, expurgava pela morte seus aliados e adeptos. Eu, quando visitei a
Romênia, há dez anos, fui ver uma
atração turística das mais instigantes
de Bucareste: uma monumental estátua de Stálin que existia numa das
principais praças da cidade e que foi
derrubada depois da queda do Muro
de Berlim e abandonada num matagal. Fui vê-la (ou vê-lo). Lá estava ele
com seu dólmã de marechal, bigodes
georgianos, boné de soldado e um
pouco virado para a direita (!). Não
resisti. Vi aquela orelha grande, obra
de escultor realista, bem-feita. Peguei
sua orelha e disse: "Está vendo onde
está? Puxo-lhe as orelhas pelo que fez
e você bem merece". Conservo como
relíquia a fotografia, tirada pelo brilhante embaixador Jerônimo Moscardo, guardada como prova de que puxei as orelhas de Stálin, eu, José do
Sarney, das cidades de Pinheiro e de
São Bento.
Outra coisa que vem e volta e torna a
vir e a voltar é o tema da violência, essa vergonha nacional que faz parte do
nosso cotidiano e que tem sua face
mais cruel na batalha diária do Rio de
Janeiro. Contra ela e para acabá-la todos os brasileiros jejuariam durante a
Quaresma inteira. Uma coisa é certa:
o sistema de segurança e de combate à
violência que temos não deu certo. Os
presídios estão transformados em
bunkers de proteção dos comandos
em chefe do crime organizado. A repressão é impotente.
Talvez esteja amadurecendo a proposta de um novo modelo, uma força
armada especial encarregada de operações contra a desordem e o caos urbano da contravenção, bem treinada,
preparada com meios tecnológicos e
recursos humanos, sem excluir a parte de inteligência, destinada a dar
tranquilidade aos cidadãos.
Vamos pensar todos, povo, governo
e militares, sobre essa nova solução.
Talvez na próxima Quaresma possamos escrever com mais otimismo
sobre o mundo e nós mesmos.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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