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São Paulo, sexta-feira, 07 de março de 2003

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JOSÉ SARNEY

A violência e a orelha de Stálin

É do nosso velho Camões, quanto mais velho, melhor, o verso das Redondilhas em que diz que "e minhas coisas ausentes / se fizeram tão presentes / como se nunca passaram". Esta é uma semana de coisas passadas e de outras que não passarão. Foi o Carnaval que passou e virá de novo daqui a um ano, com todas as alegrias, adereços, gozos e todas as coisas que lhe são bacirrábicas. Virão Mangueira, Beija-Flor, Salgueiro, Gaviões da Fiel, Portela, os bonecos de Olinda, os Fofões do Maranhão e o Pato Pelado escondido numa pequena cidade do Norte do Brasil, onde a alegria do Carnaval é espetar num mastro o pato e em torno dele dançar e beber.
Chegamos às Cinzas e estas também já passaram para voltarem no próximo ano. O padre Vieira, sempre bom de ser citado, dizia que o tempo de Cinzas tinha duas coisas a pensar: uma grande, do presente, e outra maior, do futuro. A primeira é a afirmação de que somos pó: "pulvis es" (é bom um latinzinho de ginásio). A outra coisa maior era futura: "em pó nos tornaremos". Diz Vieira que o pó que somos é alegre, porque é vida, mas o pó futuro, que haveremos de ser, não veremos, pois é morte. Cinzas à parte, esse tempo era antigamente de um jejum brabo. Hoje é aliviado, temos apenas a obrigação de não comer carne. Neste ano, sobretudo, quando Bush quer comer a carne dos iraquianos, o papa nos manda jejuar pela paz. A fome nos remeterá à oração -e nesta pedir a Deus que não se faça a vontade do presidente americano.
Semana de coisas passadas, como a comemoração dos 50 anos da morte de Stálin, quem mais matou gente na face da Terra, chegando mesmo a matar a própria família. No fim de sua vida, solitário, tendo o comunismo como um dogma religioso, implantou a sua Inquisição e, com medo de todos e de tudo que poderia parecer negar a sua fé, expurgava pela morte seus aliados e adeptos. Eu, quando visitei a Romênia, há dez anos, fui ver uma atração turística das mais instigantes de Bucareste: uma monumental estátua de Stálin que existia numa das principais praças da cidade e que foi derrubada depois da queda do Muro de Berlim e abandonada num matagal. Fui vê-la (ou vê-lo). Lá estava ele com seu dólmã de marechal, bigodes georgianos, boné de soldado e um pouco virado para a direita (!). Não resisti. Vi aquela orelha grande, obra de escultor realista, bem-feita. Peguei sua orelha e disse: "Está vendo onde está? Puxo-lhe as orelhas pelo que fez e você bem merece". Conservo como relíquia a fotografia, tirada pelo brilhante embaixador Jerônimo Moscardo, guardada como prova de que puxei as orelhas de Stálin, eu, José do Sarney, das cidades de Pinheiro e de São Bento.
Outra coisa que vem e volta e torna a vir e a voltar é o tema da violência, essa vergonha nacional que faz parte do nosso cotidiano e que tem sua face mais cruel na batalha diária do Rio de Janeiro. Contra ela e para acabá-la todos os brasileiros jejuariam durante a Quaresma inteira. Uma coisa é certa: o sistema de segurança e de combate à violência que temos não deu certo. Os presídios estão transformados em bunkers de proteção dos comandos em chefe do crime organizado. A repressão é impotente.
Talvez esteja amadurecendo a proposta de um novo modelo, uma força armada especial encarregada de operações contra a desordem e o caos urbano da contravenção, bem treinada, preparada com meios tecnológicos e recursos humanos, sem excluir a parte de inteligência, destinada a dar tranquilidade aos cidadãos.
Vamos pensar todos, povo, governo e militares, sobre essa nova solução.
Talvez na próxima Quaresma possamos escrever com mais otimismo sobre o mundo e nós mesmos.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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