São Paulo, sexta-feira, 07 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Celso Daniel

ROBERTO ROMANO

"Lembrar-me ! Sim, pobre sombra! Enquanto a memória habitar este mundo louco, lembrar-me."
Todos conhecem essa passagem de "Hamlet". Ao fantasma do pai, assassinado por meios sutis e covardes, ele promete esclarecer todas as circunstâncias do crime. Essa missão teria como alvo conseguir o repouso eterno de um homem que em vida detinha imensos poderes.
O pior tormento para um morto reside na impossível denúncia dos que lhe sufocaram o sopro vital. Se a morte de qualquer pessoa é um evento tremendo, o trespasse de alguém inserido no poder -civil, religioso, militar- repercute em milhares de consciências. Quando morre um político, sobretudo por assassinato, o assunto é público. E se governantes tudo fazem para que o crime não seja elucidado, suspeitas gravíssimas brotam nos corações. A memória de um dirigente popular, como Celso Daniel, não se mata com ligeireza.
Em data recente, a família do eminente político paulista veio a público e mostrou as razões pelas quais estranha o inquérito policial que concluiu pelo crime comum. Terminado o sigilo definido pela Justiça, foram expostos à imprensa elementos que indicam um caminho mais tenso e traumático naquela morte violenta. Fotos produzidas pelos técnicos, testemunhos em conflito com os prestados por criminosos, toda uma pletora de indícios fornecem plena razão para que o digno Ministério Público de São Paulo siga as pistas que levam o problema para o plano político.


Foram expostos à imprensa elementos que indicam um caminho mais tenso e traumático naquela morte violenta


Se levarmos em conta o que resultou do trabalho corajoso dos promotores, devemos repetir para o Brasil a exclamação de Marcelo, amigo de Hamlet -"Algo está podre no reino!"-, com o precedente grito de Horacio: "Isto pressagia alguma estranha catástrofe para o Estado".
Um governante responsável pelas finanças do partido que empolgou o Executivo federal é morto com requintes da pior crueldade. O seu mais próximo auxiliar e amigo possui relações com ativistas da corrupção. Ambos seguem em carro potente e seguro pelas ruas paulistanas e são abordados por meliantes. Apenas um deles é seqüestrado e morto. E surge um inquérito no qual as razões de ordem política são afastadas sem grandes justificativas. Todo ser pensante exige, nesse caso, razões precisas e sem evasivas.
A reivindicação dos familiares de Celso Daniel é a de que todas as possibilidades, no caso, sejam analisadas sem que se use um holofote para iluminar certo canto do palco, deixando estratégicos espaços cênicos na sombra. A violência de alguns políticos contra os familiares de Celso Daniel, contra o Ministério Público e a imprensa causam justificado temor. As providências e declarações raivosas no Parlamento, para apressar a "Lei da Mordaça", pioram as dúvidas sobre o episódio.
Celso Daniel é um nome significativo na política nacional. Com a sua morte, uma parte do Estado foi atingida. Não se elude a investigação minuciosa de seu assassinato com ameaças, censuras, truculências. É preciso que a Justiça siga o caminho da vigorosa e prudente análise de provas e testemunhos.
Até o julgamento final, a família e os amigos do morto merecem respeito. Eles falam em nome "daquele cuja voz teria arrastado muitas outras" ("Hamlet", ato 5, cena 2).

Roberto Romano, 58, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - a Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).


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