São Paulo, Sexta-feira, 07 de Maio de 1999
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Dupla porta x dupla militância


Nada mais necessário que oferecer soluções viáveis aos hospitais públicos e aprender com nossas experiências


ADIB JATENE

Há alguns meses, o professor José Aristodemo Pinotti publicou um artigo nesta Folha ("A segunda porta", Cotidiano, 27/8/1998) que criticava a existência, no Hospital das Clínicas, de instalações diferenciadas para a clientela conveniada. O artigo reacende a discussão sobre o papel do hospital universitário e o regime de trabalho dos professores universitários.
Quem visita as principais universidades do mundo sabe que os professores, em sua quase totalidade, trabalham exclusivamente num local: o hospital universitário. Seria um contra-senso impedir que atendessem a uma clientela diferenciada: profissionais preparados e competentes só poderiam atender aos clientes do sistema público, impedidos de oferecer seus conhecimentos (resultantes das pesquisas que realizam) a pessoas ou instituições que pudessem remunerar os serviços de maneira consentânea à da iniciativa privada.
A opção seria o que é praticado há décadas no Brasil: criação do tempo parcial, que permite aos professores o atendimento em consultórios e hospitais particulares, obrigando-os à dupla militância. São evidentes os prejuízos para o ensino, a pesquisa e o atendimento no próprio setor público.
É notória a situação dos hospitais públicos, universitários ou não, no país. Ante as limitações orçamentárias, não só os salários como os equipamentos e os prédios estão aviltados. A qualidade do atendimento é a maior prejudicada.
A remuneração por serviços prestados e o próprio Piso de Atenção Básica pagos pelo Sistema Único de Saúde são flagrantemente insuficientes; não cobrem custos e põem em risco toda a rede que atende ao SUS, levando ao descredenciamento entidades particulares, que podem, por outro lado, atender a clientes privados e de convênios.
Aí estão os hospitais privados que assumiram a liderança na incorporação tecnológica e nos modernos métodos de diagnóstico e terapêutica; eles não atendem à clientela do SUS.
Diante da impossibilidade de mobilizar recursos suficientes, algumas instituições tentaram fórmulas capazes de suprir suas necessidades e tornar os hospitais públicos competitivos. Costumo definir estes, universitários ou não, como aqueles procurados não só por quem não tem opção, mas também por quem pode escolher e opta pelo hospital público não por ser gratuito e sim por ser bom. Esse "bom" inclui tecnologia atualizada, profissionais competentes e dedicados (remunerados nos níveis de mercado) e compromisso com o ensino e a pesquisa.
Alguns hospitais públicos buscaram desenvolver modelos para obter fontes novas de recursos, que lhes permitissem manter e ampliar o atendimento para quem depende do serviço público.
O modelo do Incor, surgido no final da década de 70, provou ser eficiente: transformou o instituto, então praticamente inviabilizado, num dos mais importantes centros de cardiologia do mundo. Criou-se uma fundação de apoio, hoje Fundação Zerbini, que passou a arrecadar o resultado da prestação de serviços do Incor, tanto no atendimento à clientela hoje dependente do SUS como entre conveniados e pacientes privados. Com uma particularidade: de 75% a 80% da capacidade de atendimento é destinada ao SUS; de 20% a 25%, a conveniados e particulares.
Há oito anos, a renda vinda do SUS representava 62%, e a dos conveniados, 38%. Sem a correção dos valores pagos pelo SUS (mesmo com acréscimo de 75%, por ser hospital universitário), essa parcela foi se reduzindo. Hoje, 63% dos recursos vêm dos convênios; 37%, do SUS. Ressalte-se que foi mantida a distribuição de 75% a 80% da capacidade de atendimento destinada ao SUS.
Discute-se sobre a diferença de instalações e a destinação de leitos para um e outro grupo. Ocorre que, na sociedade brasileira, 25% das pessoas têm convênio e 75% dependem do SUS. Poder-se-ia argumentar que essa relação está respeitada na destinação dos leitos do Incor, embora, em São Paulo, ela seja diferente, uma vez que mais de 45% da população tem convênio.
Afirma-se que a fila dos que aguardam atendimento pelo SUS é infinitamente maior que a dos conveniados. É verdade, porque os conveniados têm à disposição toda a rede privada, com seus hospitais de Primeiro Mundo, e os que vêm ao Incor superam suas resistências diante da qualidade do atendimento e da excelência dos profissionais, boa parte deles trabalhando exclusivamente no instituto. Já os dependentes do SUS têm pouquíssimas opções: os hospitais privados, inclusive beneficentes e santas casas, reduzem ou eliminam seu acesso diante dos valores pagos pelo SUS, que não cobrem os custos. O Incor só dá atendimento a seus numerosos clientes do SUS porque montou um esquema financeiro capaz de fazer frente às despesas.
Impedir que existam condições diferenciadas para atender a conveniados significa, na prática, extinguir essa clientela, visto que ela dispõe, nos hospitais privados, de oferta maior que a demanda. Sem essa fonte de receita e sem a revalorização dos pagamentos do SUS (duplicando ou até triplicando os valores), inviabiliza-se o atendimento aos clientes do SUS e se perde o que foi construído ao longo de duas décadas. Principalmente, obriga-se um grupo de profissionais hoje inteiramente dedicados ao Incor a atender a clientes conveniados em consultórios e hospitais privados, consagrando a dupla militância, que tanto prejudica os hospitais públicos, especialmente os universitários.
Assinale-se que os dois tipos de clientes são atendidos pelos mesmos profissionais, têm o mesmo tratamento (no centro cirúrgico e na hemodinâmica) e convivem nas UTIs, nas mesmas condições, com os mesmos plantonistas. Só a hotelaria é diferenciada. Essa concessão nos permite uma arrecadação que, somada à das demais fontes, representa o maior contingente. Perdê-la é um retrocesso inaceitável. Soluções que não prejudiquem o desempenho são tarefa de todos e constituem o desafio político do financiamento da saúde.
Sou adepto de uma frase dita pelo presidente Fernando Henrique: "Política não é a arte do possível. É a arte de tornar possível o necessário". Nada mais necessário que oferecer soluções viáveis aos hospitais públicos e ter a humildade de aprender com nossas experiências bem-sucedidas. O que precisa ser evitado não é a dupla porta, mas a dupla militância.


Adib D. Jatene, 69, cardiologista, é professor titular da Faculdade de Medicina da USP e diretor-geral do Incor (Instituto do Coração). Foi ministro da Saúde (governos Collor e Fernando Henrique) e secretário da Saúde do Estado de São Paulo (governo Paulo Maluf).



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