São Paulo, Sexta-feira, 07 de Maio de 1999
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O Descobrimento e a identidade nacional


Não surpreende que, ao buscarmos nossa cara na história, no lugar de um país, vejamos só uma casa de câmbio


ROBERTO PINHO

Numa oportuna iniciativa, a Folha popularizou a carta de Caminha, que descreve a espantosa descoberta recíproca de duas culturas tão diferentes entre si, dando a quase meio milhão de brasileiros acesso a um texto escrito há 500 anos. Num país como o Brasil, com problemas de identidade cultural em todas as classes sociais, talvez seja uma das iniciativas mais desejáveis para pôr as desencontradas decisões sobre as comemorações dos 500 anos no rumo certo: popularizar as fontes originais da nossa história, às quais o povo nunca teve acesso, exceto pelos crivos da pedagogia oficial e da preferência ideológica ou pelo deboche televisivo.
Não pretendo polemizar com as correntes burocráticas que vêem os fatos do passado, a história da cultura, como produto de consumo para elites, sem conteúdo popular (ao povo, o parco pão e o farto circo...). Informar, educar e conscientizar, que já foram projetos subversivos, agora são mensagens descartáveis, pelas novas regras do marketing ufanista. A essas correntes, dizem, interessam só presente e futuro. Seja lá o que entendam por isso, é no mínimo contraditório expressá-lo numa língua construída ao longo de séculos.
Tudo isso vem a propósito da carta de Caminha e do Museu Aberto do Descobrimento. Historiadores respeitáveis consideram a carta uma verdadeira certidão de nascimento do Brasil. Isso já é um fato extraordinário. Que nação possui um documento que congela no tempo imagens, emoções e paisagens do seu nascimento descritas com cores tão reais? Não importa o ocorrido nos 500 anos seguintes: aquele foi o instante do espanto, do grito primordial, do nascimento da nossa cultura essencialmente mestiça, do ser brasileiro.
Quantos brasileiros letrados, porém, já leram a carta e refletiram sobre ela? Faça o leitor uma pesquisa com as dez pessoas mais próximas. Verá quantos a leram: as frases mais conhecidas serão as que ilustram piadas e ironias jornalísticas, revelando o incurável complexo de inferioridade nacional. Não surpreende que, ao buscarmos nossa cara na história presente, no lugar de um país, vejamos só uma casa de câmbio.
Apesar disso, a "certidão de nascimento" está aí, como ponto de partida para nossa psicanálise coletiva. Mas não só ela se conservou por 500 anos. A paisagem descrita na carta ainda está lá -e de tal modo preservada, na sua maior extensão, que ainda se pode descrevê-la com as palavras de Caminha.
Essa espantosa superposição deveria ser o espaço emblemático do quinto centenário. E, até 26 de abril de 1996, foi. Nessa data, o presidente Fernando Henrique assinou, em Porto Seguro (BA), um decreto sobre o Museu Aberto do Descobrimento. O ato reforçava a condição de patrimônio cultural e natural do sítio histórico do Descobrimento e determinava providências para preservá-lo e promovê-lo. Entretanto, decorridos sete anos da criação do museu e quatro de sua oficialização, os dois principais projetos que o consolidam estão paralisados ou desfigurados.
O primeiro é o plano de uso e ocupação do solo feito por Maria Elisa Costa e Paulo Jobim, sob patrocínio do Ministério da Cultura. É o principal instrumento para a preservação do lugar. O segundo é o parque histórico da Coroa Vermelha, local do desembarque de Cabral, onde o arquiteto Wilson Reis Neto projetou o Memorial do Encontro. Elogiado por diversas autoridades e aprovado pela Comissão do 5º Centenário, ele está sendo radicalmente rejeitado, sob uma triste onda de ataques, barbaridades, desrespeito, desinformação, incompreensão e má-fé. Resta-nos aguardar que o resultado final do quinto centenário tenha a grandeza do Brasil e não a pequenez daqueles que, não o aceitando, não o compreendem.


Roberto Pinho, 59, antropólogo, é idealizador do Museu Aberto do Descobrimento.



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