São Paulo, segunda-feira, 07 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os desafios da África

MARTIN MBARGA NGUELE


A África está determinada a não se deixar condicionar pelas circunstâncias e a decidir o seu próprio destino

Consagrando o fim da OUA (Organização da Unidade Africana) e o surgimento da União Africana, a Conferência de Cúpula dos Chefes de Estado Africanos, realizada em Durban, na África do Sul, em 9 de julho último, suscitou reações diversas.
Várias dessas reações se caracterizaram pelo ceticismo, considerando, por exemplo, que, da mesma forma que a OUA, a nova organização estaria fadada ao fracasso numa África afligida por todos os males e incapaz de fazer frente aos desafios que lhe afetavam; males esses que, no entanto, não constituem uma exclusividade da África.
Tais posicionamentos mereceriam ter nuanças na medida em que eles reservam pouco espaço às bases da caminhada africana e às condições reais deste continente, a respeito do qual há uma tendência para destacar as taras, ocultando as suas potencialidades.
Destacar os problemas que enfrenta o continente africano seria realmente compreensível se os próprios africanos não fossem os primeiros a estar conscientes deles, estando bem determinados a superá-los não mais a partir de considerações condescendentes, e sim com uma análise cuidadosa e objetiva baseada nas lições da história e de uma leitura atenta de suas forças e debilidades. Assim sendo, dizer que a OUA foi apenas um fracasso traduz considerações bastante superficiais da história do continente. Convém, pois, voltar brevemente à dialética histórica do continente para apreciar e compreender a natureza dos males que o afligem hoje.
A origem dos males que corroem o continente africano pode objetivamente ser explicada por uma herança negativa do colonialismo, da Guerra Fria, dos mecanismos do sistema econômico internacional e das insuficiências e pontos vulneráveis das políticas seguidas em muitos países durante o período posterior à independência, com a influência das políticas neocolonialistas.
Os conflitos armados que mancham de sangue os países são provenientes direta ou indiretamente dessa dialética. O Congresso de Berlim de 1884 impôs à África divisões artificiais, que não tinham em conta as afinidades culturais nem as afinidades socioétnicas das populações interessadas. Mais tarde, a Guerra Fria e a polarização do mundo em dois grupos pesaram muito sobre a evolução dos países africanos, conforme os interesses de um ou outro bloco, impondo às vezes regimes políticos (partidos únicos) cuja legitimidade era a obediência ao bloco preponderante.
Além do mais, as políticas econômicas impostas aos Estados africanos tiveram raramente em conta, com seus condicionantes, as realidades desses países, daí os resultados cheios de contrastes.
Do ponto de vista econômico, a África foi geralmente considerada fornecedora de mão-de-obra e de matérias-primas baratas -economia de escravidão. Frisemos, a título de exemplo, que em 1960 o PIB de Camarões, um país da África Central, era igual ao da Coréia do Sul. Em que nível está atualmente?
Isso levou, na prática, à sangria dos recursos da África bem mais do que a sua utilização para o desenvolvimento do continente, daí o seu empobrecimento apesar de se tratar de uma das regiões do mundo mais ricamente dotadas em recursos humanos e naturais.
O ponto de vista de que a OUA é um fracasso é discutível, considerando o contexto, os meios de que dispunha a organização e os resultados mais do que positivos que ela alcançou. Na data de criação, em 1963, a organização se atribuiu o objetivo não só de conter os choques internos e externos mas também de promover o bem-estar econômico e social das populações do continente.
O aspecto político era necessidade prioritária e foi concretizado por meio da descolonização total do continente e da consagração do processo de democratização como regra "sine qua non" de acesso ao poder.
De fato, no que se refere ao essencial, a maioria dos Estados africanos aderiu a esse princípio de democratização, que se está transformando em dinâmica irreversível, em constante evolução, com tudo o que isso supõe de ajustes e educação das populações. Como poderíamos exigir de nações tão novas a perfeição democrática quando observamos que muitas democracias "históricas", com séculos de existência, têm ainda um longo caminho para percorrer até chegar ao objetivo final assinalado pelos grandes teóricos da democracia?
Apesar das contingências e dos escassos meios de que dispunha, a OUA soube compreender que o mundo contemporâneo exigia que se privilegiasse a África econômica, que poderia, por sua vez, fornecer progressivamente os resultados positivos necessários à afirmação da África política. O desenvolvimento econômico e social é um fator de estímulo da paz e constitui um ideal para o qual todos os países africanos se esforçam em conseguir. Assim, o Tratado de Abuja (1991) instituiu a Comunidade Econômica Africana, que, em vigor em 1994, iniciou em julho de 1999 a segunda fase do processo de construção. Esse tratado é um dos aspectos econômicos mais importantes da União Africana.
Consciente do passado e refletindo sobre as lições aprendidas através de uma experiência frequentemente dolorosa, consciente de suas próprias responsabilidades, a África está determinada a não se deixar condicionar pelas circunstâncias e a decidir o seu próprio destino, fazendo um apelo ao resto do mundo para completar seus esforços no quadro de uma parceria justa.
Assim, criando a União Africana, o quadro normativo de sua futura evolução, os africanos têm desejado demonstrar a sua firme resolução no sentido de alcançar seus objetivos.

Martin Mbarga Nguele, 72, é embaixador da República dos Camarões no Brasil e escreve este texto representando o Grupo de Embaixadores e Chefes de Missão Diplomática Africanos em Brasília.



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