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São Paulo, terça-feira, 07 de outubro de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Emergência

Há emergência no Brasil.
1. O país faz sacrifício fiscal acachapante, mas só consegue pagar metade dos juros da dívida pública interna. A outra metade engrossa a dívida, sustentando juros sem precedente na história das finanças públicas modernas. Não há país que prospere quando o custo do capital é bem superior à taxa média de retorno dos negócios.
2. Não há saída por meio de corte radical do gasto público fora juros. Implicaria diminuir ainda mais a ajuda do Estado à classe média ou aos trabalhadores. Não acontecerá. O brasileiro é paciente mas insiste em sobreviver.
3. O Brasil não tem dólar para pagar o que deve em 2004 por sua dívida externa (perto de US$ 30 bilhões) sem recorrer ao capital financeiro, atraído por juros ruinosos, ou ao FMI, atraído por submissão ruinosa.
4. O agronegócio, a mineração e os bancos vão bem. Tudo o mais vai mal. Há grande dinamismo reprimido na economia brasileira: centenas de empresas que se renovaram nos melhores padrões internacionais e milhões de pessoas com ânimo empreendedor. Bloqueados todos.
5. Começou corrida dos empresários em busca de dinheiro dos trabalhadores (no BNDES) e da classe média do setor público (nos fundos de pensão). O governo vê nessa corrida oportunidade para praticar política industrial casuística, a serviço de mistura de dirigismo, hegemonismo e fisiologismo. Pululam como nunca as conspirações politico-empresariais a respeito do dinheiro dos outros. O ambiente é propício a bandalheira.
6. A mídia está quase toda quebrada e dependente do governo. Sobram poucos espaços livres.
7. O governo ficou sem agenda. Seu projeto seria devolver o país ao crescimento e conseguir recursos para a política social. Falta-lhe qualquer idéia de como fazer isso. Desorientado, espera que a recuperação das economias centrais traga alívio. É bem possível que traga, encobrindo a gravidade de nosso descaminho.
8. O presidente continua popular com o eleitorado, que se identifica com ele até em sua leviandade. Os partidos políticos supostamente progressistas, exceto o PDT, deixaram-se cooptar. O país não vislumbra agente capaz de executar a virada prometida na campanha de 2002.
Impõem-se duas levas de respostas emergenciais a essa situação emergencial.
A primeira leva restabeleceria condições para investimento privado e público: renegociar as dívidas interna e externa, fechar temporariamente as saídas de capital brasileiro e, sobre essa base, usar todo o poder de barganha e de pressão do Estado para desvalorizar o câmbio e para baixar o juro. Não teremos dólar por R$ 5 e juro real de 7% -os níveis que a situação exige- só por querê-los. Não os teremos jamais, porém, se aceitarmos a idéia de que o mercado há de fixar soberanamente esses preços enquanto o Estado apenas cala e banca.
A segunda leva desmontaria os acertos entre o poder e o dinheiro: assegurar o financiamento público das campanhas eleitorais, deixar os falidos falirem, confiar os fundos de pensão a gestores independentes e colocar sob holofotes qualquer contato entre governante e empresário.
A primeira leva injetaria dinheiro; a segunda, direito. Se faltar coragem para a primeira, podemos começar com a segunda. Não é possível dispensar ambas. Sem dinheiro e sem direito, o Brasil continuará a sufocar.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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