|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Uma pomba no meio do caminho
RIO DE JANEIRO - A tarde pedia. Uma dessas tardes de céu limpo e luz
dourada, sem calor. Ali no aterro, a
baía parecia realmente a foz de um
imenso rio de águas azuis que caminhava para o mar.
Eles nada tinham a fazer a não ser
aproveitar a tarde. E aproveitavam-na como gostavam, de braços dados e
amigos, caminhando pelas alamedas
vazias àquela hora. Haviam deixado
o carro e os compromissos no estacionamento e a distância, queriam estar
juntos e juntos estavam, e sozinhos.
Mas, no meio do caminho, onde
não havia pedra, havia uma pomba.
Uma pomba desgarrada, talvez ferida ou fatigada, que ali se postara,
aproveitando, também ela, a sombra
da tarde e do silêncio.
A moça foi a primeira a ver a pomba. Outra moça qualquer teria apenas olhado, ou dito qualquer coisa
gentil ou interessante, "olha a pomba, parece cansada, talvez esteja ferida..."."
Ela não. Ela era ela, a ventania em
potencial, a fúria recolhida, a explosão em breve repouso. Tinha sempre
uma frase rápida e ríspida, surpreendente até mesmo para ele, que também tinha frases inesperadas e muitas vezes brutais.
Certa vez, ele estava lendo um livro,
no quarto do hotel, em Los Angeles,
junto ao frigobar. Ela reclamou da
distância dele dizendo: "Por que não
bota o livro na geladeira?".
Um livro na geladeira, só mesmo
na cabeça dela. E agora a pomba à
sua frente, no meio do caminho, como uma pedra exausta.
"Dê um chute nela!" -foi o que
disse, no mesmo tom em que havia
dito "bote o livro na geladeira!". Nenhuma maldade, nada contra o livro
ou a pomba, apenas a vontade de estar com ele sem pomba e sem livro.
Ele compreendeu. Evidente que
não iria dar um chute imbecil numa
pomba arruinada, que voou quando
os dois se aproximaram.
Estava realmente ferida, voou pouco, mas o bastante.
Texto Anterior: Brasília - Eliane Cantanhêde: Na muda Próximo Texto: Otavio Frias Filho: Eterna vigilância Índice
|