São Paulo, quinta-feira, 07 de novembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Uma pomba no meio do caminho

RIO DE JANEIRO - A tarde pedia. Uma dessas tardes de céu limpo e luz dourada, sem calor. Ali no aterro, a baía parecia realmente a foz de um imenso rio de águas azuis que caminhava para o mar.
Eles nada tinham a fazer a não ser aproveitar a tarde. E aproveitavam-na como gostavam, de braços dados e amigos, caminhando pelas alamedas vazias àquela hora. Haviam deixado o carro e os compromissos no estacionamento e a distância, queriam estar juntos e juntos estavam, e sozinhos.
Mas, no meio do caminho, onde não havia pedra, havia uma pomba. Uma pomba desgarrada, talvez ferida ou fatigada, que ali se postara, aproveitando, também ela, a sombra da tarde e do silêncio.
A moça foi a primeira a ver a pomba. Outra moça qualquer teria apenas olhado, ou dito qualquer coisa gentil ou interessante, "olha a pomba, parece cansada, talvez esteja ferida..."."
Ela não. Ela era ela, a ventania em potencial, a fúria recolhida, a explosão em breve repouso. Tinha sempre uma frase rápida e ríspida, surpreendente até mesmo para ele, que também tinha frases inesperadas e muitas vezes brutais.
Certa vez, ele estava lendo um livro, no quarto do hotel, em Los Angeles, junto ao frigobar. Ela reclamou da distância dele dizendo: "Por que não bota o livro na geladeira?".
Um livro na geladeira, só mesmo na cabeça dela. E agora a pomba à sua frente, no meio do caminho, como uma pedra exausta.
"Dê um chute nela!" -foi o que disse, no mesmo tom em que havia dito "bote o livro na geladeira!". Nenhuma maldade, nada contra o livro ou a pomba, apenas a vontade de estar com ele sem pomba e sem livro.
Ele compreendeu. Evidente que não iria dar um chute imbecil numa pomba arruinada, que voou quando os dois se aproximaram.
Estava realmente ferida, voou pouco, mas o bastante.


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