São Paulo, quinta-feira, 07 de novembro de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Eterna vigilância

Ficou famosa a frase atribuída ao publicitário que fez a campanha de Clinton sobre o que define o resultado de uma eleição: "É a economia, estúpido!". A derrota do herdeiro da prosperidade clintoniana, Al Gore, após o impasse eleitoral revogado pela Suprema Corte, já havia mostrado que nem sempre é simples assim.
Agora, a ampla vitória eleitoral do presidente Bush -tão incomum em eleições de meio de mandato e depois de dois anos de retração econômica- reitera que a tese comporta exceções.
Ninguém negaria que o fator preponderante é o reflexo da economia na vida do eleitor. Mas parece que às vezes faz sentido dizer, parafraseando: "É a ideologia, estúpido!".
Bush "vencera" a eleição de fato após o 11 de setembro, quando um consenso quase universal, doméstico e exterior, cimentou sua duvidosa legitimidade. O passar do tempo e a adoção de uma política externa cada vez mais agressiva, monotemática e unilateral encarregaram-se de dissolver o apoio de fora. Mas o apoio interno se mantém.
Bush parece ter conseguido persuadir a maioria dos americanos de que o único caminho para evitar novos ataques contra alvos locais é agir preventivamente e pela força. Soube manter viva nos "corações e mentes" a ameaça representada por vilões caricaturais, mas nem por isso menos perigosos, como Saddam Hussein e Osama bin Laden.
 

Difícil não evocar, no contexto dessas imagens midiáticas, a figura do ator Jonathan Harris, morto domingo, o célebre Dr. Smith de um seriado americano que correu mundo nos anos 60. Considerado o coadjuvante mais famoso da história da televisão e um dos vilões mais marcantes na memória das gerações que o viram, Smith era uma típica projeção imaginária da Guerra Fria.
A missão espacial dos Robinson, indefectível família exemplar americana, é perturbada pela presença desse cientista, que embarcara clandestino na nave. Fica sugerido que era um espião a serviço, claro, da então União Soviética. Estava presente, na sensibilidade da época, a memória dos intelectuais comunistas americanos que traíram seu país.
Smith apresenta todas as características que o senso comum atribuía e atribui ao tipo: solerte, ávido, esnobe, covarde e vagamente europeu, detalhe que o comediante acentuou ao adotar o sotaque shakespeariano que, na excelente dublagem brasileira (a cargo do ator Borges de Barros), resultava nas imprecações altissonantes que ainda reverberam na memória.
Havia monstros supostamente ameaçadores na série, mas os Robinson, além de enfrentá-los, mantinham um olhar eternamente vigilante, ora paternal, ora hostil, sobre seu "inimigo interno". Mudou a conjuntura mundial, mudaram os vilões, "Perdidos no Espaço" é hoje uma velharia ridícula aos olhos das crianças que tentassem assistir a ele. Mas a estrutura ideológica ainda é a mesma.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.

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