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OTAVIO FRIAS FILHO
Eterna vigilância
Ficou famosa a frase atribuída ao
publicitário que fez a campanha
de Clinton sobre o que define o resultado de uma eleição: "É a economia,
estúpido!". A derrota do herdeiro da
prosperidade clintoniana, Al Gore,
após o impasse eleitoral revogado pela
Suprema Corte, já havia mostrado que
nem sempre é simples assim.
Agora, a ampla vitória eleitoral do
presidente Bush -tão incomum em
eleições de meio de mandato e depois
de dois anos de retração econômica-
reitera que a tese comporta exceções.
Ninguém negaria que o fator preponderante é o reflexo da economia na vida do eleitor. Mas parece que às vezes
faz sentido dizer, parafraseando: "É a
ideologia, estúpido!".
Bush "vencera" a eleição de fato
após o 11 de setembro, quando um
consenso quase universal, doméstico
e exterior, cimentou sua duvidosa legitimidade. O passar do tempo e a
adoção de uma política externa cada
vez mais agressiva, monotemática e
unilateral encarregaram-se de dissolver o apoio de fora. Mas o apoio interno se mantém.
Bush parece ter conseguido persuadir a maioria dos americanos de que o
único caminho para evitar novos ataques contra alvos locais é agir preventivamente e pela força. Soube manter
viva nos "corações e mentes" a ameaça representada por vilões caricaturais, mas nem por isso menos perigosos, como Saddam Hussein e Osama
bin Laden.
Difícil não evocar, no contexto dessas
imagens midiáticas, a figura do ator
Jonathan Harris, morto domingo, o
célebre Dr. Smith de um seriado americano que correu mundo nos anos 60.
Considerado o coadjuvante mais famoso da história da televisão e um dos
vilões mais marcantes na memória
das gerações que o viram, Smith era
uma típica projeção imaginária da
Guerra Fria.
A missão espacial dos Robinson, indefectível família exemplar americana, é perturbada pela presença desse
cientista, que embarcara clandestino
na nave. Fica sugerido que era um espião a serviço, claro, da então União
Soviética. Estava presente, na sensibilidade da época, a memória dos intelectuais comunistas americanos que
traíram seu país.
Smith apresenta todas as características que o senso comum atribuía e
atribui ao tipo: solerte, ávido, esnobe,
covarde e vagamente europeu, detalhe
que o comediante acentuou ao adotar
o sotaque shakespeariano que, na excelente dublagem brasileira (a cargo
do ator Borges de Barros), resultava
nas imprecações altissonantes que
ainda reverberam na memória.
Havia monstros supostamente
ameaçadores na série, mas os Robinson, além de enfrentá-los, mantinham
um olhar eternamente vigilante, ora
paternal, ora hostil, sobre seu "inimigo interno". Mudou a conjuntura
mundial, mudaram os vilões, "Perdidos no Espaço" é hoje uma velharia ridícula aos olhos das crianças que tentassem assistir a ele. Mas a estrutura
ideológica ainda é a mesma.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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