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O dever da ingratidão
É recomendável que Lula não interfira no próximo governo, guardando seu prestígio político e poder simbólico para opinar em temas de Estado
Atribui-se ao general Charles de
Gaulle -líder da resistência antinazista e presidente da França entre 1959 e 1969- a ideia de que a
"ingratidão é um dever do governante". Chocante, aparentemente
cínica, a frase nada tem de imoral.
Pois o governante precisa descartar toda consideração de ordem pessoal, por mais meritória,
se pretende defender acima de tudo o interesse do Estado e da coletividade. Esse é um dos aspectos
em que os ideais de conduta na vida pública e na vida particular
não coincidem.
A presidente eleita, Dilma Rousseff, desfruta neste momento das
núpcias da vitória, quando tudo
são rosas. Mas a frase de De Gaulle
já a interpela no horizonte. A mesma popularidade imantada na figura de seu padrinho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que
antes da eleição fora sua dádiva,
agora tende a ser seu fardo.
Uma vez investida nos imensos
poderes do hiperpresidencialismo
brasileiro, Dilma governará. Mesmo que lhe faltem as qualidades
gerenciais que parece ter, seu governo vai adquirir dinâmica e fisionomia próprias. Conforme a
praxe, uma campanha silenciosa
nos bastidores da administração
em prol de sua reeleição começará
no dia seguinte ao da posse.
Não parece haver motivo, portanto, para recear alguma duplicidade no comando do Executivo federal. Mas Lula reterá mais do que
a guarda pessoal concedida pelas
filhas de Lear ao pai que abdicava
do trono, na tragédia de Shakespeare. Mesmo sem cargo, continuará a exercer poder político e
simbólico.
O futuro desse poder paralelo
dependerá da conjuntura econômica e do desempenho da pupila.
Caso Dilma sustente altos índices
de aprovação popular, a nova presidente eclipsará o antecessor. Caso contrário, parece difícil antever
se Lula seria favorecido pela nostalgia ou atingido na condição de
inventor do eventual fracasso.
Não é preciso ser profeta, porém, para prever que não faltarão
motivos, às vezes prosaicos, de
atrito entre "rei posto" e "rei morto", nos termos da metáfora, desta
vez oportuna, evocada pelo presidente. A julgar por situações análogas no passado, é provável que o
tempo se encarregue de afastar
um do outro.
Lula está acostumado há décadas a uma insistente exposição
pública, quase sempre sob luz favorável; acostumou-se também às
benesses e condescendências que
cercam todo presidente, ainda
mais quando popular. Como se vê,
não é apenas para a presidente
eleita que a nova situação se afigura desconfortável.
O recomendável é que o presidente Lula não interfira no futuro
governo. Tendo-se definido certa
vez como "metamorfose ambulante", que ele possa reinventar-se novamente -acima do cotidiano político, opinando nos momentos decisivos e nas questões
de Estado, dedicado a emprestar
seu grande prestígio internacional
à articulação dos interesses brasileiros no exterior e ao progresso de
causas humanitárias.
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