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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Morte digna

RAUL CUTAIT

A vida é a dádiva maior da natureza. O homem, ser privilegiado na escala filogenética, dela usufrui empregando suas competências emocional, afetiva, intelectual e física, sujeitas às inevitáveis limitações pessoais e ambientais. Contudo, quaisquer que sejam as características da vida de cada um de nós, o fato é que um dia ela termina.
Se em séculos passados guerras e epidemias dizimavam populações, no mundo contemporâneo as causas de morte mais comuns são as relacionadas com as doenças crônico-degenerativas, em especial as cardiovasculares e o câncer, decorrentes do crescente aumento da expectativa de vida. Por outro lado, novos conhecimentos médicos, alta tecnologia diagnóstica e terapêutica, estruturas hospitalares mais sofisticadas, além de médicos mais bem preparados permitem prolongar vidas de pacientes de forma inacreditável até pouco tempo atrás. Contudo essa nova ordem gera um novo problema: quanto é possível tratar de uma doença e até onde isso é o melhor para o doente? Na sequência, quando é o momento de não mais tratar o paciente e aceitar sua morte, em benefício de um fim de vida menos sofrido e mais digno?
Esse questionamento faz parte do dia-a-dia de muitos médicos que, treinados para preservar a vida e dar-lhe qualidade, têm, no entanto, que aprender a conviver com a morte, lei maior do universo. Aí vem a questão, abordada em parte por Rubem Alves em seu intrigante artigo de 12/10 nesta Folha, sobre a dignidade da morte e as ações médicas ("Sobre a morte e o morrer", pág. A3). Desde já, declino minha solidariedade em relação a sua preocupação, mas permito-me fazer algumas ponderações e reflexões.
Existem situações clínicas em que a morte é claramente inevitável e traz fim ao sofrimento. Nesses casos, mesmo que com tristeza, a decisão de não procurar mais manter a vida costuma ser isenta de conflitos emocionais ou éticos, tanto por parte do médico, quanto da família e mesmo do próprio paciente. No outro extremo, nós médicos convivemos com numerosos casos em que os limites da preservação da vida e a inexorabilidade da morte não são claros, como acontece com certa frequência com pacientes internados em UTI ou, então, que apresentam doenças como o câncer, cujas fronteiras entre resposta terapêutica e insucesso não são bem definidas. Nesses casos, o médico tem de conviver com incertezas e administrar seu posicionamento em função das características da doença, da disponibilidade de recursos tecnológicos para o tratamento, da vontade nem sempre expressa do paciente, da posição da família e -por que não?- de sua experiência e conhecimento.



A inadequada comunicação com a família ou mesmo com o paciente não raro traz insegurança
Concordo que, em situações limítrofes, nem sempre os médicos agem da melhor forma, seja por inexperiência, seja por insensibilidade. Por outro lado, a inadequada comunicação com a família ou mesmo com o paciente não raro traz insegurança e incompreensão, gerando desde a sensação de que "não se está dando tudo para o paciente" até a de que "estão exagerando" ou "forçando a barra".
Como resolver isso? Basicamente melhorando a comunicação entre as equipes de saúde, em especial os médicos, e os pacientes e seus familiares, criando uma relação calcada em confiança e cumplicidade, que permite discutir os inerentes aspectos técnicos sem desvinculá-los do lado emocional. A melhor compreensão dos fatos é o caminho para as melhores decisões!
Não gostaria de terminar este texto sem um depoimento pessoal. Como cirurgião, luto pela vida desde os tempos de estudante de medicina e confesso que nunca consegui encarar a morte com a frieza que dizem que os médicos têm que ter. Ao contrário, ela sempre me fez refletir sobre o sentido da vida. No meu íntimo, é como se eu quisesse entendê-la, decifrá-la, até mesmo domá-la, talvez num vão exercício de me preparar para a viagem final.
Luto contra a morte com dedicação. Tento entender a posição do paciente diante de sua doença, de maneira clara ou nas entrelinhas. Procuro respeitar sua vontade, colocando-a à frente da tecnologia, por entender que a morte, assim como a vida, merece dignidade. No entanto confesso que, mesmo nesta fase mais madura de minha vida profissional e pessoal, vivencio situações de conflito quanto ao que fazer.
Felizmente, já passou a época em que as decisões eram tomadas apenas pelos médicos. Hoje, entende-se que tanto os pacientes quanto suas famílias devem também participar do encaminhamento das soluções médicas, em prol de posições mais humanas e dignas tanto para a vida, quanto para a morte.


Raul Cutait, 53, cirurgião gastrenterologista, professor associado o Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP, é presidente do Conselho Médico e diretor-geral do Centro de Oncologia do Hospital Sírio Libanês. Foi secretário da Saúde do Município de São Paulo (gestão Paulo Maluf).



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