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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A herança maldita

JOSÉ MÁRCIO CAMARGO

O Ministério da Fazenda disponibilizou em seu site o documento "Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002". O objetivo do documento é mostrar os efeitos da incidência de impostos e da apropriação dos gastos sociais do governo federal na distribuição de renda no país. Em linhas gerais, as conclusões do documento são de duas ordens:
"Primeiro, que a carga tributária é quase que igualmente distribuída entre os mais ricos e os mais pobres, tendo pouca influência sobre a distribuição inicial da renda pessoal; segundo, que, ao contrário do que seria de esperar, os gastos sociais do governo são, em grande parte, apropriados pelos 20% mais ricos da população".
Como resultado, o efeito da estrutura de taxação e dos gastos sociais sobre a desigualdade na distribuição da renda no Brasil é pífio, se comparado a outros países do mundo ocidental. Enquanto no Brasil a redução do coeficiente de Gini (que mede a desigualdade de renda) em decorrência da intervenção governamental é de 12%, nos EUA é de 28% e, na Bélgica, de 46%. Em outras palavras, a intervenção do Estado brasileiro serve apenas para replicar a desigualdade na distribuição da renda no país.
Porém os problemas com a estrutura dos gastos sociais no Brasil não se esgotam na constatação acima, que já seria suficientemente grave para indicar que o país precisa de mudanças importantes em suas políticas sociais. Tomemos alguns pontos que consideramos particularmente perversos.
Em primeiro lugar, os gastos sociais do governo federal brasileiro correspondem a 15,5% do PIB (se incluirmos as renúncias fiscais hoje existentes), um nível bastante elevado para os padrões internacionais. Entretanto, desse total, 65,8% são destinados ao pagamento de aposentadorias, 12,8% à área de saúde e apenas 5,3% a educação e cultura.
Do total de gastos com educação e cultura, 56,3% vão para o ensino superior, sendo que 75% desses recursos são utilizados para o pagamento de pessoal. Por outro lado, para o ensino fundamental são destinados 11,4% do total. Levando em conta que 8% da população brasileira tem 65 anos ou mais, 30% têm 15 anos ou menos e que 40% das crianças pobres brasileiras não completam o ensino fundamental, essa distribuição de recursos entre aposentadorias, ensino superior e ensino fundamental é particularmente perversa.
O grau de perversidade dessa distribuição é ressaltado quando analisamos quem se apropria dos recursos. No Brasil, 50% dos gastos com aposentadorias são apropriados pelos 10% mais ricos da população, enquanto os 10% mais pobres se apropriam de uma parcela próxima a zero desses gastos. Por outro lado, 40% dos gastos com aposentadoria são apropriados por pessoas com idade entre 45 e 60 anos e aproximadamente 15% por pessoas com mais de 65 anos. Ou seja, o sistema de aposentadorias brasileiro é generoso com os jovens e com os ricos, gerando pouca ou nenhuma proteção para os pobres.
Dos recursos destinados à educação, 56,3% são utilizados para garantir a gratuidade das universidades públicas, cujos alunos são, em grande parte, oriundos de famílias cuja renda per capita as coloca entre as 10% mais ricas do país (46% dos alunos dessas universidades pertencem a esse tipo de família). Por outro lado, 11,4% se destinam ao ensino fundamental. Em um país no qual 50% das crianças vivem em famílias pobres, das quais 80% não completam o ensino fundamental, tal alocação de recursos por parte do Estado é uma aberração.
Como pretendemos reduzir a pobreza no Brasil, se 40% de nossas crianças não completam o ensino fundamental, ao mesmo tempo em que o governo, em lugar de concentrar esforços para mantê-las na escola, transfere, através de seus programas sociais, em média R$ 8.000 por ano para os 10% mais ricos e R$ 400 por ano aos 10% mais pobres?



A intervenção do Estado brasileiro serve só para replicar a desigualdade na distribuição da renda no país
O estudo não propõe soluções específicas para esses problemas, mas, implicitamente, aponta caminhos para tal. É necessário reformar nossos programas sociais de modo a favorecer os mais pobres e, consequentemente, reduzir as transferências para os mais ricos. Várias são as políticas capazes de atingir esse objetivo, tais como diminuir o valor das aposentadorias excessivas, como está fazendo a reforma da Previdência, e cobrar mensalidades nas universidades públicas, onde estão concentrados os estudantes das famílias ricas. De outro lado, concentrar recursos na geração de incentivos à manutenção das crianças pobres na escola, um dos objetivos do Bolsa-Família e do Bolsa-Escola, também aponta na direção correta.
Os resultados apresentados no estudo do Ministério da Fazenda mostram que reduzir significativamente a pobreza no país não é uma tarefa fácil, mas não é impossível. Depende de vontade política para enfrentar as resistências dos grupos que hoje se beneficiam das transferências governamentais. As reações ao documento, tanto à esquerda quanto à direita, assim como as dificuldades para a aprovação da reforma da Previdência, mostram que essa não será uma tarefa fácil. O corporativismo e a defesa de privilégios, disfarçados na idéia de universalização dos programas sociais e, quem diria, na afirmação de que os 10% mais ricos (cuja renda média anual é de R$ 38.543) são, na verdade, a classe média, dão o tom da dificuldade de atingir esse objetivo.
Reconhecer o problema é o primeiro passo para chegar a uma solução, mas é um passo decisivo. E o mais importante, ao produzir o documento, reformar a Previdência e priorizar o Bolsa-Família, o atual governo mostra que está disposto a atacar essa "herança maldita" que nos legou a sociedade brasileira.


José Márcio Camargo, 56, doutor em economia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA), é professor do Departamento de Economia da PUC-RJ e sócio da Tendências Consultoria Integrada.


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