São Paulo, terça-feira, 07 de dezembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Um haraquiri político?

BORIS FAUSTO

Cada vez mais me convenço de que certas características de personalidade têm um papel relevante no comportamento das figuras políticas. Disso resulta que o cálculo e a racionalidade muitas vezes cedem terreno a atitudes surpreendentes e prejudiciais para a construção de uma carreira na vida pública. Penso no caso da prefeita Marta Suplicy. Não pretendo rever aqui os atos de sua controvertida gestão nem os lances de uma campanha que repercutiu no cenário nacional. Vou me concentrar no que vem ocorrendo nas semanas posteriores à sua derrota eleitoral, ainda que seja preciso ligar alguns fatos exemplares e sensações atuais a fatos exemplares e sensações geradas no curso de sua administração.
Tomemos o caso das obras realizadas na cidade, várias delas iniciadas após o transcurso de metade do mandato e empreendidas a toque de caixa. Quando a prefeitura iniciou simultaneamente obras que tornaram infernal a passagem pelas pontes Eusébio Matoso e Cidade Jardim -duas vias de acesso fundamentais para a zona oeste e parte da zona sul da cidade-, imaginou-se como razão essencial uma "lógica de resultados", mesclada com propósitos eleitorais. A "lógica de resultados", na cabeça de alguns cidadãos, enunciava-se mais ou menos assim: ""Eles'" (o governo é sempre "eles", qualquer que seja o partido no poder) vão nos fazer sofrer, mas aprontam tudo bonitinho às vésperas da eleição. A gente esquece o sofrimento e vota na prefeita".
Como se sabe, as coisas não se passaram assim. Pouca gente se deixou levar pelo "espetáculo das obras" e Serra foi eleito, numa demonstração de maturidade do eleitorado, e não num ato de injustiça, como pretenderam alguns dirigentes petistas.


Pouca gente se deixou levar pelo "espetáculo das obras" e Serra foi eleito, numa demonstração de maturidade do eleitorado


Pior de tudo, passadas as eleições, a natureza encarregou-se de demonstrar a precariedade das obras realizadas a toque de caixa. O túnel aberto na avenida Rebouças não resistiu à primeira chuva forte e inundou sem apelação, instalando um caos que se prolongou por uma usualmente tranqüila manhã de domingo. Isso sem falar numa cratera aberta na avenida Nove de Julho ou, durante a campanha, na inundação do prolongamento da Radial Leste, no dia seguinte à sua inauguração, com a água invadindo casas modestas.
Essas observações não são "queixas de ricos", como não foram os ricos que formaram a imensa maioria dos votantes que elegeu Serra. Basta lembrar que há muito tempo o automóvel deixou de ser um bem de consumo dos privilegiados e a obviedade de que os ônibus também transitam na superfície.
Outro exemplo, este mais como indício do que como constatação final: a construção dos CEUs, em regiões pobres da cidade. É inegável que tal iniciativa, pretendendo concentrar ensino formal e atividades de recreação, que são também parte de um processo educacional, produziu um impacto imediato positivo entre a população mais carente. Não é por acaso que a prefeita obteve votação muito expressiva na periferia da cidade.
Mas convém lembrar que vários educadores puseram em dúvida a existência de quadros especializados para as múltiplas tarefas dos CEUs e apontaram para a necessidade de sua formação -uma tarefa absolutamente necessária, ainda que de baixa rentabilidade do ponto de vista eleitoral. Sem isso, os CEUs se transformariam, quando muito, em centros de lazer. Não seriam inúteis, mas estariam longe de atender a necessidades educativas.
Uma notícia e uma imagem recentes dos jornais geram preocupações, mais depressa do que se poderia imaginar. Vemos professores e coordenadores de educação artística, a maioria deles dos CEUs, exigindo o pagamento de salários atrasados, um indício elementar de que o monumentalismo teve primazia sobre a consistência.
Escolhi os exemplos acima -e poderia lembrar outros (as obras inacabadas, a varredura das ruas interrompida)- para tentar transmitir aos não-paulistanos um pouco da sensação de abandono que tomou conta da cidade. Mas nenhum exemplo contribuiu mais para essa sensação do que o abandono da cidade por parte da prefeita, em sentido literal, licenciando-se por dez dias para ir a Paris e à reinauguração do Teatro Scala de Milão. Longe de mim o propósito de fazer exploração populista com a condição social privilegiada da prefeita. O fato só merece destaque pela sua incidência na vida pública e pelo profundo desagrado que causou entre muitos eleitores e mesmo nos quadros do PT.
E aí volto às especulações sobre um comportamento com incidência tão negativa para uma carreira política construída, afinal de contas, não só com erros, mas também com acertos. Impulso da prefeita para livrar-se dos problemas de uma cidade que a teria tratado tão mal, como se vitórias e derrotas não fizessem parte das peripécias da política? Cansaço incontido ou desejo de abandonar a vida pública?
Talvez só os muito próximos possam responder a essas perguntas. Para quem observa mais à distância, fica a constatação de que o licenciamento da prefeita para ir à Europa, no atual momento, equivale a um haraquiri político.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Glauco Arbix, Mario Sergio Salerno e João Alberto de Negri: Inovar para sustentar o crescimento
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.