São Paulo, terça-feira, 07 de dezembro de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Um haraquiri político?
BORIS FAUSTO
Pior de tudo, passadas as eleições, a natureza encarregou-se de demonstrar a precariedade das obras realizadas a toque de caixa. O túnel aberto na avenida Rebouças não resistiu à primeira chuva forte e inundou sem apelação, instalando um caos que se prolongou por uma usualmente tranqüila manhã de domingo. Isso sem falar numa cratera aberta na avenida Nove de Julho ou, durante a campanha, na inundação do prolongamento da Radial Leste, no dia seguinte à sua inauguração, com a água invadindo casas modestas. Essas observações não são "queixas de ricos", como não foram os ricos que formaram a imensa maioria dos votantes que elegeu Serra. Basta lembrar que há muito tempo o automóvel deixou de ser um bem de consumo dos privilegiados e a obviedade de que os ônibus também transitam na superfície. Outro exemplo, este mais como indício do que como constatação final: a construção dos CEUs, em regiões pobres da cidade. É inegável que tal iniciativa, pretendendo concentrar ensino formal e atividades de recreação, que são também parte de um processo educacional, produziu um impacto imediato positivo entre a população mais carente. Não é por acaso que a prefeita obteve votação muito expressiva na periferia da cidade. Mas convém lembrar que vários educadores puseram em dúvida a existência de quadros especializados para as múltiplas tarefas dos CEUs e apontaram para a necessidade de sua formação -uma tarefa absolutamente necessária, ainda que de baixa rentabilidade do ponto de vista eleitoral. Sem isso, os CEUs se transformariam, quando muito, em centros de lazer. Não seriam inúteis, mas estariam longe de atender a necessidades educativas. Uma notícia e uma imagem recentes dos jornais geram preocupações, mais depressa do que se poderia imaginar. Vemos professores e coordenadores de educação artística, a maioria deles dos CEUs, exigindo o pagamento de salários atrasados, um indício elementar de que o monumentalismo teve primazia sobre a consistência. Escolhi os exemplos acima -e poderia lembrar outros (as obras inacabadas, a varredura das ruas interrompida)- para tentar transmitir aos não-paulistanos um pouco da sensação de abandono que tomou conta da cidade. Mas nenhum exemplo contribuiu mais para essa sensação do que o abandono da cidade por parte da prefeita, em sentido literal, licenciando-se por dez dias para ir a Paris e à reinauguração do Teatro Scala de Milão. Longe de mim o propósito de fazer exploração populista com a condição social privilegiada da prefeita. O fato só merece destaque pela sua incidência na vida pública e pelo profundo desagrado que causou entre muitos eleitores e mesmo nos quadros do PT. E aí volto às especulações sobre um comportamento com incidência tão negativa para uma carreira política construída, afinal de contas, não só com erros, mas também com acertos. Impulso da prefeita para livrar-se dos problemas de uma cidade que a teria tratado tão mal, como se vitórias e derrotas não fizessem parte das peripécias da política? Cansaço incontido ou desejo de abandonar a vida pública? Talvez só os muito próximos possam responder a essas perguntas. Para quem observa mais à distância, fica a constatação de que o licenciamento da prefeita para ir à Europa, no atual momento, equivale a um haraquiri político. Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Glauco Arbix, Mario Sergio Salerno e João Alberto de Negri: Inovar para sustentar o crescimento Índice |
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