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TENDÊNCIAS/DEBATES
Meu Carnaval
FREI BETTO
Chega o Carnaval e, com ele, a tristeza de palhaço que vê o circo pegar fogo. Fico surdo aos tamborins, cego à desnudez das mulheres e de nariz
tapado ao cheiro ácido do suor quente.
É outro o Carnaval que tanto anseio.
Não o de salões abarrotados de gritos
desconexos nem o de desfiles que disfarçam de luxo a indigência do povo.
Quero a alegria d'alma, arlequim bailando em meu espírito, o odor suave da
colombina afagando os meus cabelos.
Quero a serpentina enlaçando fraternuras e confetes salpicando de estrelas os
telhados de meus sonhos. Quero o Rei
Momo premiando o meu país de farturas e o corso da alegria atravessando as
ruas dos meus passos.
Guardo a nostalgia dos carnavais de
rua, dos cordões de mascarados, dos
carros alegóricos, dos blocos alegres,
dos salões de serpentinas, dos adultos e
das crianças misturados nas avenidas e
nos desfiles de fantasias.
Agora, há um quê de tristeza nessa
alegria compulsória. De foliões, viramos meros espectadores -ou melhor,
telespectadores do reinado de Momo. O
ágape dos piratas da perna de pau cedeu
lugar ao erotismo dos destaques das escolas de samba. Felizmente já não se
aponta a cabeleira do Zezé nem se pergunta se será que ele é.
Onde andam as costureiras de fantasias originais, as máscaras que faziam
inveja aos venezianos, o corso enfileirando pela avenida carros apinhados de
foliões? Onde andam as marchas-ranchos, as quadrinhas irônicas, a crítica
mordaz aos políticos?
Não irei a bailes ébrios de álcool nem
me atarei a cordões que me algemam a
liberdade. A mim pouco importa que,
no Carnaval, homens se fantasiem de
mulheres e mulheres vistam-se como
homens. O que ambiciono é mais ousado: virar-me pelo avesso, trazer à tona
aquele que sou e não tenho sido, travestir-me de mim mesmo, da minha face
mais real e que, no entanto, trago mascarada nos demais dias do ano. É a loucura, essa loucura do sopro divino do
qual sou feito. É ela que pretendo expor
nas passarelas, nu, sem fantasias.
É a loucura, essa loucura do sopro divino do qual sou feito que pretendo expor nas passarelas, nu, sem fantasias
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Então, voarei alucinado pelas avenidas e, ao aterrissar no sambódromo,
provocarei um silêncio reverencial, suspensão de todo respirar que só as epifanias suscitam. A multidão em delírio
aplaudirá o próprio êxtase, embriagada
de plenitudes. Despirei a fantasia do hedonista que me povoa e entrarei no corso dos que buscam os bailes do espírito.
Desfilarei na Via Láctea, cavalgarei um
asteróide, aplaudirei o rodopio de Gaia,
porta-bandeira sob os olhos dourados
do mestre-sala, o Sol. Espalharei pelo teto do céu confetes de estrelas, e contemplarei os cometas cruzando serpentinas
brilhantes.
Não encharcarei minha solidão de
cervejas nem mergulharei no mar de espumas brilhantes e ilusões estéreis. Serei insensatamente o clone de mim
mesmo, arrancando-me novo de velhas
células. Porta-bandeira atrevido, exibirei na escola de samba uma por uma de
minhas quimeras, tão palpáveis quanto
o amor que dói no peito. Rasgarei a minha máscara e, com os trapos, tecerei
um tapete de utopias, sobre o qual dançarei o mais ousado dos frevos, até que
amanheça em minha esperança.
Gritarei como os náufragos ao avistarem terra firme e trarei o meu rosto pintado com as cores do arco-íris, para que
todos vejam que bani a tristeza que me
assalta ao se aproximar o Carnaval dos
incautos, essa demência coletiva que satura os sentidos sem aplacar o desejo.
Quero é festa, muita festa, com pierrôs
embevecidos frente às promessas sedutoras de odaliscas formando o cordão
de madrugadas de silêncio, nas quais
nem respiração se escuta, só o ritmo imponderável do mistério.
Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto,
60, frade dominicano e escritor, é autor de, entre
outras obras, "Gosto de Uva -escritos selecionados" (Garamond). Foi assessor especial da Presidência da República (2003-04).
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