São Paulo, quarta-feira, 08 de fevereiro de 2006

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ANTONIO DELFIM NETTO

Trindade maldita

Uma das coisas que mais impressionam quem se interessa pela escolha profissional dos economistas estrangeiros nascidos entre 1930 e 1950, e que, posteriormente, ganharam notoriedade pelo calibre de sua contribuição teórica e rigor na investigação empírica, é a quase unanimidade da resposta: sofreram, junto com suas famílias, as conseqüências da destruidora crise de 1930. Decidiram, então, tentar entender e melhorar o funcionamento do sistema econômico. Como foi possível isso ocorrer se a teoria econômica "garantia" o pleno emprego?
A crise dos anos 30 havia sido precedida por muitas outras, mas nenhuma com a sua virulência e profundidade. Ela apenas confirmava, de maneira trágica, a famosa "trindade maldita" que acompanhara a economia desde a Revolução Industrial. O registro das primeiras crises data do fim do século 18, na Inglaterra. A organização produtiva chamada de "capitalista" revelou desde cedo a "trindade maldita": 1) apesar de relativamente eficiente, o sistema deixado a si mesmo tem dificuldade de eliminar a pobreza; 2) o seu funcionamento altamente competitivo tem a tendência de acentuar as desigualdades entre os indivíduos e, 3) em determinados momentos, ele se ajusta mais fortemente, produzindo desemprego de caráter patológico.
Foi a constatação prática dessa "trindade" que inspirou as críticas, do ponto de vista moral, dos diversos "socialismos utópicos" e, do ponto de vista moral e prático, do "socialismo científico" de Marx e Engels. Marx, a partir de uma brilhante antropologia, propôs uma outra "explicação do mundo" e uma outra organização social da produção, que superaria a "trindade maldita". Infelizmente, os que, no poder, reivindicaram o "marxismo" tentaram eliminar a "trindade", suprimindo a liberdade, o que apenas acentuou a miséria moral e material.
A recessão dos anos 30 marca um ponto decisivo na história econômica e no pensamento econômico. Hoje sabemos que a teoria monetária e a política do FED, inspiradas na realidade dos anos 30, em lugar de minorar, provavelmente aprofundou a crise. Havia muita dissensão entre os economistas, mas nenhum com peso suficiente para ser ouvido. Lembremo-nos de que a teoria econômica de então "garantia emprego a todos os que pudessem e se dispusessem a trabalhar em troca do salário real de equilíbrio". Essa mesma "garantia" é dada hoje pela teoria neoclássica incorporada pela grande maioria de nossos atuais economistas. Aliás, um grande Prêmio Nobel (antes de se apaixonar pela teoria do desenvolvimento) dizia que todo desemprego é "voluntário", produto do ataque de "preguiça" que de tempos em tempos se abate sobre os trabalhadores...
John Maynard Keynes (com suas virtudes e defeitos, o maior economista do século 20) foi quem primeiro enfrentou a discrepância monstruosa entre a realidade do desemprego e a hipótese do "pleno emprego", até hoje incorporada na racionalidade abstrata dos neoclássicos. É por isso que um pouco menos de ênfase na teoria do equilíbrio geral (uma realidade fora do tempo histórico); um pouco mais de ênfase na teoria monetária da produção (uma realidade no tempo histórico); uma compreensão maior de que o futuro não está escrito no passado (processos não-ergóticos) e o reconhecimento de que o futuro é imperscrutável, melhoraria -e muito- a visão dos nossos excelentes neoclássicos.


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.
@ - dep.delfimnetto@camara.gov.br


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