São Paulo, segunda-feira, 08 de fevereiro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES


Fim do mundo, decisão na incerteza

ALDO PEREIRA


O aquecimento global é um daqueles casos clássicos: algo deve ser feito (ou não), mas cada uma das decisões traria resultados incertos


ATÉ AGORA a discussão do aquecimento global (AG) por governantes e cientistas gerou apenas um acordo: o de que não há acordo algum. Veja a seguir algumas posições oferecidas no variado menu desse debate.
Sim, atmosfera e oceanos estão esquentando. Não, não estão. Sim, estão esquentando e tendem a esquentar mais. Estão esquentando, sim, mas já estiveram antes, é apenas processo cíclico e, portanto, com previsível regressão espontânea. Estão esquentando, sim, aqui e ali, mas, na média, não. Claro, estão esquentando, e é por causa da atividade humana; principalmente pelo efeito estufa resultante da acumulação atmosférica de gases carbônicos emitidos na queima de carvão, gás, petróleo, biocombustíveis e florestas.
Ou então: OK, o AG decorre da atividade humana, mas é tarde demais para revertê-lo: cálculo de defasagem entre implementação de medidas corretivas e respectivos efeitos mostra que o prazo já venceu; o fim do mundo é inevitável. OK, estão esquentando, mas as causas são naturais (atividade solar e/ou geológica); logo, nada a fazer, afora, se você tem fé, rezar. OK, as causas são naturais, mas quem sabe ainda possamos anular ou abrandar seus efeitos.
Ou ainda: AG é real e não resulta de nenhuma causa "natural", e sim da proliferação da humanidade, esse câncer da biosfera, e sua crescente atividade econômica; precisamos controlar a natalidade e reorganizar este sistema econômico baseado em modelo energético obsoleto. Qual!
Conter emissão de carbono iria gerar catastrófica recessão global, com imprevisíveis tumultos políticos e sociais, desordem do tipo Haiti multiplicada por mil.
Equívoco, ilusão, delírio ou sóbria e lúcida percepção da realidade, o tema gera crescente discórdia. E tão apaixonada que o decoro degenera em desaforo mesmo entre cientistas de quem, pela ética do ofício, esperamos compostura compatível com a solene busca do saber. Agravam com isso nossa perplexidade e incerteza.
Configura-se aqui, aliás, um daqueles problemas clássicos de decisão na incerteza, campo da pesquisa operacional nas ciências da administração.
É categoria de problemas comum, tanto na vida pessoal de todos nós quanto na rotina de empresas e agências estatais: algo precisa ser feito (ou não), mas cada uma das decisões consideradas produziria resultados incertos, já que os dados carecem de exatidão e que fatores contingentes poderiam exercer influências imprevistas no andamento do processo indicado.
Procedimentos lógico-matemáticos de decisão na incerteza abrangem, tipicamente, complexas matrizes cartesianas. Mas, numa simplificação extrema do problema do aquecimento global, considere duas variáveis: 1) o AG é real; 2) não existe AG.
Em relação a essas duas contingências, equacione duas outras: A) intervir; B) não intervir. Cruzadas as quatro contingências, configuramos quatro (2 x 2) opções: A1: reconhecer o AG como real e intervir para conter emissão de carbono ao custo de recessão mundial e trilhões de dólares, mas, com isso, talvez salvar o mundo;
B1: não intervir, e daí resultar, talvez, o fim do mundo (por "fim do mundo" não se entenda o do planeta, claro, nem da biosfera, possivelmente nem mesmo o da humanidade, mas sim o do mundo civilizado);
A2: denunciar a controvérsia como falso alarme conducente a desperdício de trilhões que talvez pudessem mitigar males reais como fome, pobreza, ignorância, endemias e epidemias, calamidades sísmicas e outros desastres naturais;
B2: desconsiderar o falso alarme do AG, descartar todas as propostas de intervenção e, com isso, economizar trilhões que talvez pudessem mitigar males reais etc.
Note em cada uma das opções o "talvez" que timbra a incerteza. Entre as quatro, B1 é claramente inaceitável: quem, sensatamente, proporia expor o mundo civilizado à destruição? Entre as restantes, então, a que melhor se recomenda é a A1, que nos oferece, ainda que incerta e custosa, uma rota de salvação.
Ingênuos ou maliciosos, lobistas e dirigentes contrários tomem nota: apesar das incertezas, o sensato é pesquisar e implementar, já, processos de produção de alimentos e geração de energia que não requeiram desmatamento nem combustão de tipo algum. "Quod erat demonstrandum". Alguns céticos, daqueles que julgam tardias todas essas opções, preferirão rematar essa discussão com outro dito latino, a recomendação proverbial de esquecer o amanhã e aproveitar o dia de hoje: "carpe diem".
Talvez.


ALDO PEREIRA, 77, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha.
aldopereira.argumento@uol.com.br

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