São Paulo, sexta-feira, 08 de março de 2002

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JOSÉ SARNEY

Democracia simulada

O Estado de Direito é o sistema das leis, não dos homens -clássica definição. Ele é a garantia da igualdade, da reunião do povo para a construção da sociedade. Ele nos afasta da anarquia e nos dá a certeza de que, sem o Estado, será o domínio dos mais fortes, da violência.
Os criadores da democracia moderna -Rousseau, Locke- preocuparam-se longamente com o balanço entre os direitos coletivos e as garantias individuais. Na realidade, aqueles são uma decorrência destas na medida em que devem assegurar a cada indivíduo direitos como o do trabalho, o da organização coletiva, o da eleição de seus representantes, o da liberdade -direitos civis e sociais. É esse o poder do Estado, instrumento que Churchill chamava de "bem comum".
A distinção fundamental entre o direito público e o privado é que neste se pode fazer tudo o que não é proibido pela lei, enquanto naquele só o que é determinado por ela. Tudo o que não é determinado pela lei e não for inspirado no interesse público as autoridades não podem fazer, porque é ilegal -desvio ou excesso de poder.
O excesso de poder é claro, e cito Heli Lopes Meirelles: "Quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, vai além do permitido e exorbita no uso de suas faculdades administrativas. Excede, portanto, a sua competência legal e, com isso, invalida o ato, porque ninguém pode agir em nome da administração fora do que a lei lhe permite".
Diz ele sobre desvio de poder: "(...) se verifica quando a autoridade, embora atue nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos ou com fins diversos dos objetivados pela lei ou exigidos pelo interesse público. O desvio de finalidade ou poder é, assim, a violação ideológica da lei, ou, por outras palavras, a violação moral da lei, colimando o administrador público fins não queridos pelo legislador, ou utilizando motivos e meios imorais para a prática de um ato administrativo aparentemente legal".
Lembra Lopes Meirelles que esse ato "é consumado às escondidas ou se apresenta disfarçado sob o capuz da legalidade e do interesse público".
O abuso de poder é sempre feito dissimulado, escondido, disfarçado, mesquinho e indigno, por isso a lei o capitula como crime. Não vamos querer que seja feito às claras, como nos totalitarismos. Burla-se a democracia com o desvio de poder.
Os infinitos desvios de poder no totalitarismo ou poder absoluto estão construídos sobre uma simulada legalidade formal. A Inquisição, com os Tribunais do Santo Ofício, montou sempre verdadeiros carnavais para mostrar a sua autoridade.
Blaise Pascal, nos seus "Pensamentos", ridicularizou as roupas usadas pelos julgadores facciosos, que, para exercerem sua função, só possuíam de verdadeira a cabeleira postiça.
Mas, nos tempos modernos, todas as experiências de Estado autoritário foram feitas em cima do desvio do poder na sua forma mais ampla, com a reforma das próprias cartas básicas. Assim foi nos regimes fascista e nazista e nos regimes comunistas. Assim foi, mais recentemente, no Peru, com a reforma do Estado feita por Fujimori, e agora na Venezuela, com o Estado Revolucionário de Chávez. Será a nossa modernidade a "democracia simulada ou virtual"?
Nunca poderemos deixar instaurar-se no cerne do poder brasileiro qualquer tolerância com essa violência fundamental de pôr o aparato do Estado a serviço de causas subalternas.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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