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JOSÉ SARNEY
Democracia simulada
O Estado de Direito é o sistema
das leis, não dos homens -clássica definição. Ele é a garantia da
igualdade, da reunião do povo para a
construção da sociedade. Ele nos afasta da anarquia e nos dá a certeza de
que, sem o Estado, será o domínio dos
mais fortes, da violência.
Os criadores da democracia moderna -Rousseau, Locke- preocuparam-se longamente com o balanço entre os direitos coletivos e as garantias
individuais. Na realidade, aqueles são
uma decorrência destas na medida
em que devem assegurar a cada indivíduo direitos como o do trabalho, o
da organização coletiva, o da eleição
de seus representantes, o da liberdade
-direitos civis e sociais. É esse o poder do Estado, instrumento que Churchill chamava de "bem comum".
A distinção fundamental entre o direito público e o privado é que neste se
pode fazer tudo o que não é proibido
pela lei, enquanto naquele só o que é
determinado por ela. Tudo o que não
é determinado pela lei e não for inspirado no interesse público as autoridades não podem fazer, porque é ilegal
-desvio ou excesso de poder.
O excesso de poder é claro, e cito Heli Lopes Meirelles: "Quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, vai além do permitido e
exorbita no uso de suas faculdades administrativas. Excede, portanto, a sua
competência legal e, com isso, invalida
o ato, porque ninguém pode agir em
nome da administração fora do que a
lei lhe permite".
Diz ele sobre desvio de poder: "(...)
se verifica quando a autoridade, embora atue nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos ou
com fins diversos dos objetivados pela
lei ou exigidos pelo interesse público.
O desvio de finalidade ou poder é, assim, a violação ideológica da lei, ou,
por outras palavras, a violação moral
da lei, colimando o administrador público fins não queridos pelo legislador,
ou utilizando motivos e meios imorais
para a prática de um ato administrativo aparentemente legal".
Lembra Lopes Meirelles que esse ato
"é consumado às escondidas ou se
apresenta disfarçado sob o capuz da
legalidade e do interesse público".
O abuso de poder é sempre feito dissimulado, escondido, disfarçado,
mesquinho e indigno, por isso a lei o
capitula como crime. Não vamos querer que seja feito às claras, como nos
totalitarismos. Burla-se a democracia
com o desvio de poder.
Os infinitos desvios de poder no totalitarismo ou poder absoluto estão
construídos sobre uma simulada legalidade formal. A Inquisição, com os
Tribunais do Santo Ofício, montou
sempre verdadeiros carnavais para
mostrar a sua autoridade.
Blaise Pascal, nos seus "Pensamentos", ridicularizou as roupas usadas
pelos julgadores facciosos, que, para
exercerem sua função, só possuíam de
verdadeira a cabeleira postiça.
Mas, nos tempos modernos, todas
as experiências de Estado autoritário
foram feitas em cima do desvio do poder na sua forma mais ampla, com a
reforma das próprias cartas básicas.
Assim foi nos regimes fascista e nazista e nos regimes comunistas. Assim
foi, mais recentemente, no Peru, com
a reforma do Estado feita por Fujimori, e agora na Venezuela, com o Estado
Revolucionário de Chávez. Será a nossa modernidade a "democracia simulada ou virtual"?
Nunca poderemos deixar instaurar-se no cerne do poder brasileiro qualquer tolerância com essa violência
fundamental de pôr o aparato do Estado a serviço de causas subalternas.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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