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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Mudança silenciosa
O rumo tomado pelo governo
Lula oculta uma mudança profunda nas perspectivas do Brasil. Essa
mudança resulta da convergência de
dois processos distintos. O primeiro
processo é o sinal dado pelo eleitorado
na eleição de 2002 de que ele quer ver
o país tomar outro caminho. O segundo processo é a remoção, gradual e
progressiva, dos obstáculos econômicos e ideológicos que a situação mundial impunha à mudança pretendida
pelo eleitorado. Só uma alternativa
programática e política forte -inteiramente diferente das que vêm sendo
oferecidas à nação- poderá dar efeito prático ao encontro desses dois
processos.
Em 2002, os eleitores pretenderam
dar novo rumo ao país: desenvolvimento com justiça, o produtivo de
mãos dadas com o social. Os interesses financeiros deveriam ser enquadrados e a primazia deveria passar a
caber aos interesses do trabalho e da
produção. Todos os candidatos principais à Presidência, inclusive o oficial,
tiveram que se apresentar como agentes da transformação desejada.
Deu, porém, no que deu: em vez de
servir de preliminar à reorientação, a
luta para conter as fragilidades econômicas legadas pelo governo anterior
serviu para radicalizar o projeto daquele governo. A única agenda de reforma institucional adotada pelo novo
governo foi a agenda dos credores. Os
brasileiros não mudaram de objetivo.
Não sabem, contudo, como alcançá-lo: por meio de que instrumentos econômicos e com quais agentes políticos. O presidente, usando seus improvisos para apresentar-se toda a noite
no noticiário como bonachão chistoso
e entendedor dos sofrimentos do pobre, continua muito popular. A exata
medida de sua situação real, entretanto, é dada pela conjugação de duas frases. Uma é um provérbio turco:
"Quando o machado entrou na floresta, as árvores disseram: "O cabo desse
machado é um de nós".". A outra é o
comentário de um grande banqueiro
brasileiro: "Os ex-escravos dão os melhores capatazes". Nada como a pedagogia dos fatos e o aparecimento das
alternativas surpreendentes para solapar uma popularidade dessas.
Não bastaria a manifestação mudancista do eleitorado se ela não estivesse sendo acompanhada pela derrubada dos obstáculos internacionais a
uma mudança de rumo. Alguns aspectos dessa derrubada são lentos e
fortes: a demonstração pela China e
pela Índia de que não é preciso para
crescer aceitar a pseudo-ortodoxia
econômica que nossos governos abraçaram e a desmoralização dessa pseudo-ortodoxia nos centros de pensamento do Atlântico norte em favor de
idéias contrastantes. Outros aspectos
são pontuais e dramáticos: é o caso
das lições da rebeldia Argentina -carente de estratégia positiva, mas, assim mesmo, superior à antiestratégia
da rendição nacional.
Quando, em 2002, o povo brasileiro
deu seu sinal de querer mudança, não
se via com clareza a ocasião para fazer
o que ele queria. Agora se vê. A vontade encontrou-se com a oportunidade.
Agora só faltam clareza programática
e instrumento político. Não menosprezo o quanto de esforço quase insano, de desprendimento, de coragem,
de imaginação e de amor estão contidos nesse "só faltam". Antecipo sem
ilusões o jogo bruto que se fará para
negar opção ao povo brasileiro e para
desmerecer qualquer proposta, por
mais modesta e fundamentada que seja, como aventura e desvario. Subestima o Brasil, porém, quem supõe que a
luta vá acabar com essas trapaças previsíveis. Apenas começará.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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