São Paulo, terça-feira, 08 de março de 2005

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Mudança silenciosa

O rumo tomado pelo governo Lula oculta uma mudança profunda nas perspectivas do Brasil. Essa mudança resulta da convergência de dois processos distintos. O primeiro processo é o sinal dado pelo eleitorado na eleição de 2002 de que ele quer ver o país tomar outro caminho. O segundo processo é a remoção, gradual e progressiva, dos obstáculos econômicos e ideológicos que a situação mundial impunha à mudança pretendida pelo eleitorado. Só uma alternativa programática e política forte -inteiramente diferente das que vêm sendo oferecidas à nação- poderá dar efeito prático ao encontro desses dois processos.
Em 2002, os eleitores pretenderam dar novo rumo ao país: desenvolvimento com justiça, o produtivo de mãos dadas com o social. Os interesses financeiros deveriam ser enquadrados e a primazia deveria passar a caber aos interesses do trabalho e da produção. Todos os candidatos principais à Presidência, inclusive o oficial, tiveram que se apresentar como agentes da transformação desejada.
Deu, porém, no que deu: em vez de servir de preliminar à reorientação, a luta para conter as fragilidades econômicas legadas pelo governo anterior serviu para radicalizar o projeto daquele governo. A única agenda de reforma institucional adotada pelo novo governo foi a agenda dos credores. Os brasileiros não mudaram de objetivo. Não sabem, contudo, como alcançá-lo: por meio de que instrumentos econômicos e com quais agentes políticos. O presidente, usando seus improvisos para apresentar-se toda a noite no noticiário como bonachão chistoso e entendedor dos sofrimentos do pobre, continua muito popular. A exata medida de sua situação real, entretanto, é dada pela conjugação de duas frases. Uma é um provérbio turco: "Quando o machado entrou na floresta, as árvores disseram: "O cabo desse machado é um de nós".". A outra é o comentário de um grande banqueiro brasileiro: "Os ex-escravos dão os melhores capatazes". Nada como a pedagogia dos fatos e o aparecimento das alternativas surpreendentes para solapar uma popularidade dessas.
Não bastaria a manifestação mudancista do eleitorado se ela não estivesse sendo acompanhada pela derrubada dos obstáculos internacionais a uma mudança de rumo. Alguns aspectos dessa derrubada são lentos e fortes: a demonstração pela China e pela Índia de que não é preciso para crescer aceitar a pseudo-ortodoxia econômica que nossos governos abraçaram e a desmoralização dessa pseudo-ortodoxia nos centros de pensamento do Atlântico norte em favor de idéias contrastantes. Outros aspectos são pontuais e dramáticos: é o caso das lições da rebeldia Argentina -carente de estratégia positiva, mas, assim mesmo, superior à antiestratégia da rendição nacional.
Quando, em 2002, o povo brasileiro deu seu sinal de querer mudança, não se via com clareza a ocasião para fazer o que ele queria. Agora se vê. A vontade encontrou-se com a oportunidade. Agora só faltam clareza programática e instrumento político. Não menosprezo o quanto de esforço quase insano, de desprendimento, de coragem, de imaginação e de amor estão contidos nesse "só faltam". Antecipo sem ilusões o jogo bruto que se fará para negar opção ao povo brasileiro e para desmerecer qualquer proposta, por mais modesta e fundamentada que seja, como aventura e desvario. Subestima o Brasil, porém, quem supõe que a luta vá acabar com essas trapaças previsíveis. Apenas começará.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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