São Paulo, terça-feira, 08 de março de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Velhas e queridas

RIO DE JANEIRO - Outro dia, em Belo Horizonte, quiseram tirar uma foto minha no escritório de famoso escritor das Gerais. Sentaram-me na poltrona em frente à sua mesa de trabalho, num escritório bacana, com paredes revestidas de nobre madeira, tapetes orientais, lustres murano e uma velha máquina de escrever que servira para desovar pelo menos duas obras-primas de nossa literatura.
Por Júpiter, que máquina! Nunca tinha visto uma igual, nem mesmo na cabine do responsável pela navegação do "Titanic", máquina que aparece de relance pouco antes de o navio bater no iceberg.
Com as teclas à mostra, bem no alto, alinhadas como num pente, escondiam praticamente o teclado. Não sei como aquilo podia funcionar, pois, aparentemente, não havia espaço para a fita -nem mesmo para o rolo onde o papel pudesse ser colocado. No entanto a geringonça devia funcionar, funcionou realmente, durante espantosos 22 anos. O escritor nunca mudara de equipamento.
Pulo para o meu caso pessoal. Acredito que tive umas cinco ou seis máquinas um pouco mais modernas do que aquela, e me espantava com os avanços de cada uma. Foram todas aposentadas com a chegada dos computadores. Por inexplicável sentimentalismo, guardei apenas uma delas, na qual escrevera, pálido de espanto como aquele poeta que ouvia estrelas, o meu primeiro romance.
Impossível fazer isso com os computadores. Em pouquíssimo tempo estou sendo obrigado a mudar de equipamento, quase que anualmente, devido a superação dos modelos. Resultado: não me apeguei a nenhum deles, troco-os como troco de lâmina de barbear ou de escova de dentes.
Não creio que eles tenham inspirado qualquer tipo de poema a nenhum poeta. Mas lembro um bonito soneto de Ghiaroni, dedicado à sua máquina de escrever. Não o sei de cor. Tuberculoso, terminal, ele pede que a mãe dele não se assuste quando, em noite de luar, sozinhas, as teclas baterem devagar.


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